Canto do Inácio

Tuesday, July 13, 2010

FRANÇOIS OZON EXPLORA PRIMEIRO TIME DE ESTRELAS
INÁCIO ARAUJO


"Oito Mulheres " se propõe, inicialmente, como "whodunit" (quem é o culpado?). Um homem é assassinado em sua própria casa, numa noite de neve. Ali estão oito mulheres, da sogra às duas filhas, passando por mulher, cunhada, criadas. Os fios telefônicos são cortados; não existe possibilidade de deixar a casa e informar o fato à polícia.

Resta às mulheres se improvisar em detetives e levar adiante uma trama tipo Agatha Christie, em que conversar equivale a investigar, e investigar, a buscar as causas secretas que poderiam levar cada uma delas àquele gesto.

Trata-se, em primeiro lugar, de um filme de atrizes: de Danielle Darrieux a Virginie Ledoyen, passando por Catherine Deneuve, Isabelle Huppert, Emmanuelle Béart, Fanny Ardant, temos aí três ou quatro gerações do primeiro time de estrelas francesas.

Em um segundo nível, trata-se de um filme explicitamente teatral, não só por se desenrolar basicamente em um cenário (a sala de uma mansão), como porque cada uma das mulheres representa um papel. Ninguém se espante, portanto, de se ver diante de interpretações também teatrais.

À medida que se desenvolve, o "whodunit" ganha novos contornos. Existe um quê musical (cada uma delas interpreta uma canção, o que lembra o artifício usado antes por Alain Resnais em "Aquela Velha Canção", de 1997). A comédia também se insinua.

Por fim, o espectador se dá conta de que o caráter detetivesco da trama é, antes de mais nada, um recurso pelo qual as personagens abandonarão, pouco a pouco, os papéis sociais que representam para se mostrar tal qual são.

O assassinato (e a descoberta da assassina) se torna o acessório. Cada uma das oito mulheres carrega uma culpa (ou várias) e um segredo, assim como nós. É como se o filme nos chamasse a refletir sobre a vida como indispensável exercício de tolerância em face dos defeitos do ser humano.

Ou, em outras palavras, a imperfeição é nossa condição. Se retiramos a capa de sociabilidade que existe em um homem, descobrimos sem grande dificuldade que se trata de um monstro.

Se retiramos a capa de todos eles (ou de todas elas, no caso) -que é a proposta do filme-, talvez estejamos a caminho de encontrar uma nova sociabilidade e uma nova compreensão.

O raciocínio parece incontestável e, sobretudo, aplicável a um tempo em que a humanidade já esgotou mais ou menos todo o repertório de iconoclastia disponível. Os pobres já desmascararam os ricos e vice-versa. Os filhos já desnudaram os pais e vice-versa.

Resta que existe algo de estranho nessa operação. Se todos nos desvendamos mutuamente, tudo também se torna inoperante.

Cria-se uma espécie de democracia do defeito que não reconhece hierarquia e de certa forma aplasta os problemas humanos, limitando-os à sua dimensão psicológica. Talvez se originem daí, e do caráter excessivamente demonstrativo da trama, os não raros momentos de monotonia que permeiam o novo longa de Ozon.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 12 de setembro de 2002)

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