Canto do Inácio

Tuesday, July 13, 2010

FRANÇOIS OZON DESMONTA EXPECTATIVAS LEVANDO A INCERTEZAS
INÁCIO ARAUJO


Desaparecer é uma coisa, morrer é outra. O segundo caso nos leva ao território da certeza, o primeiro só traz dúvidas.

É bem nesse âmbito que vive Charlotte Rampling (Marie) em "Sob a Areia". Logo no início do filme, seu marido desaparece tomando um banho de mar. Ou melhor: desaparece. Se se afogou tomando banho de mar, se sumiu como as pessoas que saem para comprar cigarro e nunca mais voltam, se se suicidou no mar ou em qualquer outro lugar, isso é coisa que não se pode saber.

Mais: eles formam um velho casal feliz. Não apaixonado à maneira juvenil, mas com um amor que se pode chamar de sólido -realizado, mas não terminado.

Quando as pessoas morrem, resta aos que sobrevivem um longo trabalho de luto: uma adaptação à nova realidade, o acerto de contas com as culpas etc..

Como Jean (Bruno Cremer) não morreu, mas está desaparecido, a situação de Marie é mais angustiante, e é dessa angústia que o filme de François Ozon trata.

Ou antes: estamos diante de uma situação em que o fio que separa o real do imaginário se torna tremendamente tênue. Marie precisa continuar a viver. Dá aulas de inglês, encontra-se com os amigos. Mas Jean nunca deixa de estar com ela. Talvez não se deva dizer que ele é um fantasma assombrando sua vida. Como o amor entre os dois, suas aparições são suaves, nada espetaculosas, nem assustadoras. Jean é uma imagem, uma presença.

Podemos pensar em filmes em que mortos aparecem (de "Ghost" a "Os Outros") como fantásticos, no sentido em que a imaginação se impõe à realidade, ou antes, em que a realidade deriva de nossa capacidade de imaginação. O que François Ozon parece fazer aqui é cutucar essa distinção. Em "Sob a Areia", o espectador permanece em estado de alerta, sem saber ao certo com o que está lidando.

Esse é o encanto do filme. Embora saibamos que a presença de Jean resulta da imaginação de Marie, sabemos que ela não é uma psicótica.

O marido não é uma visão, não surge do além. As reações de Marie, a maneira como fala do marido são, afinal, compreensíveis. Os amigos podem ficar um tanto estarrecidos com o que ela diz, mas não alarmados.

Desde "Sitcom", Ozon tem se pautado por um cinema que, se ainda não chega a fazer dele um dos grandes cineastas franceses em atividade, em todo o caso tem o dom de desmontar expectativas, de não se acomodar ao sentido dado das coisas.

Aqui, Ozon conduz o espectador a uma espécie de flutuação, digamos assim, na medida em que todo o tempo destrói nossa expectativa (que tem a ver com sentidos dados, sejam eles o luto, a loucura, o fantástico ou qualquer outro) e nos leva a um estado de incerteza, em que pouco a pouco nos enredamos, ao lado de Charlotte Rampling, numa aventura de que desconhecemos não só o final, mas em que os dados de que dispomos não permitem alicerçar nenhuma certeza quanto ao chão por onde se anda.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 21 de dezembro de 2001)

0 Comments:

Post a Comment

<< Home