Canto do Inácio

Monday, May 10, 2010

"KILLER" COLOCA MATADOR NA ROTA DA TRAGÉDIA
INÁCIO ARAUJO

"The Killer" é o filme mais cerebral de John Woo até hoje. Não só porque a maior parte dos tiros fatais é desferida na cabeça dos inimigos. Mas também no sentido em que esta é a trama mais complexa desenvolvida até aqui pelo cineasta de Hong Kong.

Por uma vez, ele recua de seu habitual gosto coreográfico em favor de uma intriga mais interiorizada, embora sem renunciar aos balés de violência que caracterizam seu estilo.

A história trata de um matador, Jeff (Chow Yun Fat), que, durante um tiroteio, cega por acidente a cantora Jenny. Culpado e apaixonado, Jeff aproxima-se dela.

Erro fatal para um matador. A moça torna-se a isca de que o investigador Lee (Danny Lee) precisa para chegar a Jeff. Lee é policial cujo método de prender criminosos supõe um conhecimento íntimo do inimigo, que o faça capaz de, por exemplo, adivinhar seus movimentos.

Daí por diante, o que se verá surgir é uma complexa trama de solidariedades que se armam e desarmam. Assim, Jeff topa fazer um último trabalho apenas para pagar a operação que restituirá a visão de Jenny.

Com Lee, seu entendimento será mais doloroso. Entre os dois homens obstinados com a idéia de cumprir o dever que se atribuem surge uma amizade ambígua: eles passam todo o tempo se admirando e se enfrentando.

Ao longo da trama -que vai engrossando cada vez mais-, ambos percebem que o mundo se divide entre a ética e a ausência de ética. E que, mesmo estando em campos opostos, pode-se partilhar certos princípios.

Essa constatação é como um novo ponto de partida. Na verdade, o filme corria o risco de se tornar um imenso contra-senso. Jeff é um matador profissional. Que relação existe entre a mais sórdida das profissões e a ética? Nenhuma, em princípio.

Mas, em "The Killer" - como em outros filmes de Woo -, os personagens só encontram sua identidade fora de si mesmos. Um homem só passa a ser sujeito de seus atos a partir do momento em que um fator externo leva à descoberta da subjetividade.

No caso de Jeff, esse fator é Jenny: a mulher surge em sua vida como hipótese de redenção de todos os males que o vitimaram e que ele transformou em agressividade. Jenny é a chance que ele vislumbra de assumir o próprio destino. Mas é essa chance mesmo que levará Jeff à tragédia de viver o próprio presente com olhos no futuro e, ao mesmo tempo, tentar se desembaraçar de um passado que se nega a ser apagado facilmente.

A maquinação notável com que Woo articula termos como amor, violência, amizade, traição, transitando da mais completa sordidez à poesia mais sublime, faz de "The Killer" um acontecimento invulgar. É um grande filme popular.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 26 de maio de 1995)

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