Canto do Inácio

Saturday, December 19, 2009

TÉCNICA TRIUNFA EM "EXTERMINADOR 2"
INÁCIO ARAUJO DA REDAÇÃO

Em "O Exterminador do Futuro 2" está em jogo mais ou menos a mesma coisa que no filme de 1984. Para quem não lembra, naquele filme o mundo do futuro é dominado por robôs.

A única chance de salvação dos humanos está em um líder que, no momento em que se passa o filme, ainda está por nascer. Assim, o robô Arnold Schwarzenegger vem do futuro para matar a mãe.

Ele não conseguia. Neste segundo filme, passado alguns anos depois, os humanos do futuro roubam um robô obsoleto -modelo Arnold- e o enviam ao presente com a missão de proteger o futuro salvador da espécie (que agora já nasceu e é um menino). Mas existem robôs mais avançados, e um deles é destacado para combater o robô Arnold e matar o menino.

Existe aí, outra vez, uma fantasia alucinada e significativa: a hipótese do fim da espécie por conta do desenvolvimento tecnológico, a existência de um salvador na tradição messiânica de Moisés e Jesus Cristo. Coloca-se em jogo a tensão entre o homem e a técnica.

O filme de James Cameron não é bobo, e conta com um magnífico arsenal de efeitos especiais, que atribuem à situação um realismo assombroso. Mas é esse realismo que impede a adesão total ao filme. O robô do mal é tão desenvolvido -em todos os sentidos- que três quartos do filme beiram a monotonia.

Sabemos que os robôs se enfrentarão o tempo todo, e que o inimigo é virtualmente indestrutível. Todo o interesse do filme acaba um pouco limitado, assim, pelas trucagens. A fábula -em si muito boa- é afetada pela necessidade de o filme nos assombrar o tempo todo com novos e formidáveis efeitos. É uma insidiosa vitória da técnica sobre o homem, numa história que pretende mostrar, afinal, a vitória do homem sobre a técnica.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 18 de dezembro de 1995)

"TRUE LIES" ACHA VERDADE ATRAVÉS DA MENTIRA
INÁCIO ARAUJO

O filme de grande maquinário hoje pode ser considerado um gênero do cinema americano. É essa espécie de filme em que o espetáculo se apresenta em estado puro, tendo como fundamento a pura impossibilidade "disso" acontecer na realidade.

Em "True Lies", o momento da grande ilusão acontece quando o terrorista Aziz, fugindo do espião Harry Tasker (Arnold Schwarzenegger), atira-se do alto de um prédio com sua moto. E cai, são e salvo, numa piscina.A ação continua: Harry tenta seguir Aziz, mas o cavalo em que está montado (sim, ele está montado em um cavalo) refuga. Efeito de real introduzido em plena fantasia de maquinário: cavalos refugam, o que leva Harry a ser projetado para frente e quase cair do prédio.

O mesmo tipo de efeito se viu há pouco em "O Fugitivo", ou em "Velocidade Máxima". Mas "True Lies" tem uma enorme vantagem, ao menos em relação a este último: tira proveito do maquinário, mas faz questão de tomar distância em relação a ele.

Isso é que torna verdadeiras as mentiras do filme. Mentiras que já começam na história, onde Harry é espião para uma ultra-secreta agência dos EUA. Tão secreta que durante anos a fio sua mulher Helen (Curtis) pensa que ele é um dedicado vendedor. Tão dedicado que nunca aparece em casa. É o que leva Helen a iniciar um flerte com Simon (Bill Paxton), um vendedor de carros usados que se faz passar por... espião.

E aí a história de espionagem (baseada em um filme francês de Claude Zidi, de 1991) meio que desaparece, dando lugar a essa segunda ficção, em que Arnold mobiliza metade da agência para espionar Helen, detectar a extensão dos chifres e coisas assim.

É claro que em dado momento volta-se à intriga central, inclusive para o final delirante, puxado a trucagens formidáveis em que, entre outras, um avião invade um prédio.

É ao investir no desvendamento da trapaça que constitui o uso indiscriminado do maquinário de cinema (megaorçamento, efeitos especiais, trucagens) que "True Lies" consegue sacudir a poeira do cinema ilusionista e fugir da monotonia dos filmes feitos em função das trucagens (como "O Exterminador do Futuro 2", do próprio Cameron) ou da ação irrefreada.

Em vez disso, o investimento no humor ganha uma dimensão a que o cinema de aventura parecia ter abdicado. Isso acontece em parte porque, há tempos, Schwarzenegger trata de suavizar sua imagem de brutamontes (e em se aperfeiçoar como ator). Aqui, tanto ele é capaz de usar a metralhadora sem fazer cerimônia, como de dançar o tango (com Tia Carrere, bandidona sexy e vulgar).

Mas quem defende a parte de humor é mesmo a ótima Jamie Lee Curtis, comediante que acerta um sucesso e em seguida se esconde atrás de meia dúzia de abacaxis. No conjunto, "True Lies" é um filme que justifica a Hollywood dos grandes espetáculos: tira todo proveito da máquina, sem ser maquinal; e sabe como usar a inteligência para buscar verdades na mentira cinematográfica.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 02 de setembro de 1994)

INVENTIVIDADE DE FLEISCHER SURGE COM FORÇA EM POLICIAL
INÁCIO ARAUJO

No momento em que uma retrospectiva na Cinemateca Francesa está levando a uma reavaliação da obra de Richard Fleischer, o lançamento, no Brasil, de "O Homem que Odiava as Mulheres" certamente nos ajudará a melhor situar o cineasta, morto em março deste ano.

O filme gira em torno de um assassino de mulheres que desconcerta a polícia de Boston - até é criado um "birô do estrangulador". Mas as mulheres continuam a morrer. Quem são elas? Aí está o problema: não há uma característica principal.

O roteiro de Edward Anhalt segue as pegadas do clássico "M, o Vampiro de Dusseldorf", de Fritz Lang. Inicialmente, os crimes (os primeiros). Depois, a ação da polícia, tentando descobrir, em cada tarado, o responsável. O mistério engrossa. Aí tomamos contato - nós, a polícia só bem depois- com o estrangulador, Tony Curtis.

A mise-en-scène de Fleischer se faz marcar pelo perfeito controle da narrativa e, sobretudo, pelo uso originalíssimo da técnica do "split-screen", que divide a tela em pelo menos duas ações simultâneas. Como o filme é rodado em tela larga, a simultaneidade das ações cria momentos interessantes.

Mas o melhor é o uso da dupla dimensão, isto é: vemos ao mesmo tempo uma imagem aberta e outra fechada do mesmo acontecimento: um plano geral e um primeiro plano. Quase sempre o primeiro plano é lançado, primeiro, sobre um objeto sem interesse (digamos, uma cadeira). Em seguida, o personagem senta-se nessa cadeira, e o que era desinteressante ganha vida.

O procedimento tem duas conseqüências. Uma, da ordem da linguagem. É como se Fleischer abrisse a linguagem diante de nós e a expusesse. Um pouco como se o filme fosse uma mesa de operação lingüística. Outra, de ordem narrativa, pois com isso a tensão e o mistério que cercam os personagens e sua evolução no filme transferem-se para a tela e nos atingem diretamente -não mais como história, mas como imagem.

É preciso admitir que esse procedimento - a divisão de telas - torna um tanto áspera a visão do filme numa TV comum, pois além da tela larga (com a qual se perdem as faixas acima e abaixo do quadro de TV) a divisão da tela diminui aquilo que vemos. Mas esse problema não diminui as virtudes deste filme belíssimo - antes pelo contrário, é prova de suas virtudes.

(texto publicado na Folha de S. Paulo no dia 16 de julho de 2006)

"ASSIM ESTAVA ESCRITO" REVELA LADO CRUEL DO CINEMA
INÁCIO ARAUJO

Pode-se definir "Assim Estava Escrito", para resumir, como o mais realista dos filmes sobre cinema. Ninguém se surpreenderá, portanto, que seja também o mais cruel. Tudo começa quando um produtor a perigo tenta reunir seu velho grupo: um diretor célebre, uma atriz famosa. Será que alguém dará força ao traste?

Porque é um traste esse Kirk Douglas do filme de Vincente Minnelli. É o que saberemos logo depois, no "flashback". Quando ainda candidato a produtor, Kirk trai o amigo, candidato a diretor, e faz o que pode e o que não pode para a jovem atriz, Lana Turner, se apaixonar por ele e ajudá-lo a subir.

E o que poderia compensar tamanhos desvios de caráter? A percepção de que o negócio dos sonhos, o cinema, tem um aspecto bem concreto, bem feio. É dessa feiura que se cria, de certo modo, o maravilhoso.

(texto publicado na Folha de S. Paulo no dia 23 de agosto de 2009)