Canto do Inácio

Wednesday, September 16, 2009

"GHOST" MAIS PARECE UMA RECEITA CULINÁRIA QUE FILME
INÁCIO ARAUJO


Deve ser divertido rever "Ghost - Do Outro Lado da Vida" para saber o que restou deste "best-seller" da virada dos 80 para os 90 do século passado.

É um museu de tudo. Existe, primeiro, a violência, que leva Patrick Swayze a ser morto. Depois, o espiritismo, a ideia de vida após a morte, quando o fantasma passa a frequentar a vida de Demi Moore.

Esse aspecto é associado, naturalmente, ao romantismo frenético (tipo "O Morro dos Ventos Uivantes") que "Ghost" recoloca em circulação. Mas existe ainda o humor, que Whoopi Goldberg garante, na pessoa da médium, que às vezes parece saída direto de "Trama Macabra", de Hitchcock.

"Ghost" parece mais uma receita culinária do que um filme. Na produção, ninguém pode se queixar: fez sucesso e ganhou Oscars. Já o espectador pode ficar com alguma indigestão.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 09 de agosto de 2009)

Tuesday, September 01, 2009

CINEASTA EXERCITA AMADURECIMENTO
INÁCIO ARAUJO

Tudo em "A Última Noite" diz respeito ao 11 de setembro, embora sejam bem poucas as menções ao atentado - e nenhuma explícita.

O filme começa com Montgomery "Monty" Brogan (Edward Norton) salvando a vida de um cachorro. É a única coisa certa que fez na vida, pensará depois. Esse cachorro o acompanhará ao longo de todo o filme como a lembrar da importância de cada momento, ou de momentos específicos, dentro da vida de um homem.

Mais tarde veremos Monty ser preso, com toneladas de drogas escondidas no estofamento do sofá de sua casa. Ele pretendia deixar o negócio, mas a ganância o levou a transgredir ainda uma vez. Essa vez mudou seu destino e o levou a ser condenado a sete anos de prisão.

Liberdade e atitude

Todo o filme de Spike Lee gira em torno de sua última noite de liberdade e da atitude que terá de tomar ao amanhecer: entrega-se à prisão, mata-se ou foge? Isto é, ainda uma vez, nessa última noite, tudo será questão de optar, de tomar uma decisão que afetará sua vida.

Qualquer dessas possibilidades o levarão a se afastar das pessoas que fazem parte de sua existência: Naturelle, sua mulher, e os dois amigos de infância, Jakob e Frank.

Com exceção de Naturelle, convém enfatizar, nenhum desses personagens é negro. E mesmo ela é uma mulata porto-riquenha. As contradições sociais e raciais, de que Nova York é tão pródiga, são decididamente colocadas em surdina, com exceção de uma sequência (talvez a mais forte do filme, em compensação), em que Monty deblatera contra mais ou menos todas as etnias que fazem parte do dia-a-dia da cidade. E exceto, ainda, pela presença de mafiosos russos.

Nova visão

De todo modo, o essencial não são as contradições, mas os encontros e reencontros. Em seu drama, Monty Brogan se descobre e redescobre os amigos. Pois o seu trauma é correlato ao 11 de setembro, em que um acontecimento leva as pessoas a encarar de outro modo aos outros, a si mesmas, à vida em geral. E Nova York, claro.

É possível dizer que "A Última Noite" sofre, em determinados momentos, de excesso de literatura. Que lhe falta o impacto daqueles trabalhos em que observa a violência das relações brancos/ negros (como o recente "A Hora do Show").

Aqui quase tudo parece refletido e pesado, como se o golpe simbólico representado pela destruição das torres gêmeas levasse Spike Lee a um exercício de introspecção. Ou, de certa forma, de amadurecimento.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 23 de maio de 2003)

SPIKE LEE SUPERA EXCESSO DE TEMAS
INÁCIO ARAUJO

Há filmes que se perdem por falta do que dizer. "Milagre em Santa Anna" corre o risco de se perder por excesso do que dizer. No início temos uma ação policial: um pacato funcionário dos correios mata friamente um cliente que aparece à sua frente.

Quem é esse homem? Por que fez isso? Tudo que se descobre é uma cabeça de estátua italiana, perdida desde a explosão de uma ponte, durante a Segunda Guerra Mundial.

Somos então projetados, em flashback, de 1983 para 1944: Segunda Guerra, avanço dos Aliados na Itália, um batalhão de soldados negros na luta por Santa Anna, cidade da Toscana.

É então que as várias linhas que desenvolve Spike Lee no roteiro de James McBride começam a se desenvolver e, não raro, se acotovelar no filme.

Há o racismo dos oficiais, para começar (os soldados atravessam um rio, o que era sua missão; o oficial não acredita neles apenas por serem negros). Depois, há o conhecimento que passamos a desenvolver do grupo: o honesto Stamps, o sargento disposto a acreditar que o racismo começa a acabar; o sensual Cummings, que não leva fé nessa história de integração; o simplório Train e o porto-riquenho Negron. Negron é quem, quase 40 anos depois, será assassino.

Nessa ação, Train encontra um menino traumatizado pelas ações militares e passa a protegê-lo. Levam-no à cidade, onde vive a família da bela Renata. Lá haverá alemães, de um lado, e partisans, de outro. Entre os alemães, os que não acreditam mais na luta e os que desertam.

Entre os partisans, um traidor. Ufa! O filme mal começou e já temos tudo isso - resumindo bem. O "plot" policial desaparece (só retornará no final). O filme permanece na guerra, e na guerra Spike cria algumas sequências notáveis. Uma delas: o carro de som com a alemã que tenta fazer propaganda e seduzir os soldados negros, de maneira a que desertem.

No meio de uma dolorosa travessia de um rio, isso faz um efeito, e Spike obtém uma atmosfera estranha, em que se encontram som e imagem, o interior do carro de som e o campo de batalha, os soldados americanos e os alemães.

Excessos

Mais adiante outro momento forte. Depois que o desinibido Cummings transa com Renata, a tensão entre Cummings e Stamps (que também a desejava) explode, feroz.

Há momentos menos felizes, sobretudo quando Spike calca a mão na violência de certas cenas. O único equívoco imperdoável do filme, no entanto, talvez seja o fato de o roteiro ter sido escrito pelo autor do romance, o que resulta num excesso de questões. Ainda assim, esse tipo de problema é preferível à insuficiência de ideias quase crônica da maior parte dos filmes em cartaz atualmente.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 30 de abril de 2009)