Canto do Inácio

Monday, August 24, 2009

BALADA DO PISTOLEIRO
INÁCIO ARAUJO


Aquilo parecia piada: um faroeste feito por diretor italiano, rodado na Europa, com elenco obscuro, colocava-se agora como alternativa à mais cara das tradições do cinema americano -o faroeste.

Mas foi assim que aconteceu, em 1964. Com as produções mitológicas, do tipo Maciste, em crise, a Itália começou a investir nesse tipo de faroeste, Sergio Leone optou por filmar "Por um Punhado de Dólares". Não foi apenas um grande sucesso. Foi também o momento em que toda a história do cinema começou a se mover.

Não se pode esquecer que rolava a Guerra do Vietnã, e a crença nos valores americanos -que o "western" representava mais do que qualquer outro gênero - começava a ficar abalada. O gênero agonizava. Mas o que Sergio Leone (1929-1989) propunha era de outra ordem: filmes de baixo orçamento, feitos por alguém que crescera vendo e sonhando com faroestes.

Essa releitura do Oeste tinha particularidades capazes de embrulhar o estômago dos fãs mais tradicionais: a violência extrema, a indigência dos vilões, a descrição de um mundo desprovido de leis (em que, ao contrário do faroeste tradicional, parece que ninguém procurava impor a lei).

Em poucas palavras, com o faroeste espaguete proposto por Segio Leone surge uma metáfora poderosa da vida no Sul da Itália. O que se acreditava uma brincadeira de mau gosto se impôs como um gênero popular de primeira linha. E, em vista da crise do faroeste nos Estados Unidos, acabou mesmo por substituí-lo e garantir sua sobrevivência.

Desde o início, já se podia perceber certas características que particularizavam o cinema de Sergio Leone. Em suas mãos, a ação parecia estancar. Podia-se ver durante minutos um homem sentado, conversando com seus botões, tendo por fundo uma paisagem desértica.

Mas, quando explodia, a violência era para valer: duelos rápidos, mortais, com tiros certeiros, desferidos de forma original, sem grande compromisso com a verossimilhança. Leone não cultivava a câmera lenta que, mais tarde, consagraria Sam Peckinpah.

Quer dizer, não na hora dos duelos mortais. Existe outro tipo de duelo, em que os adversários medem forças, que rendeu uma cena antológica de "Por uns Dólares a Mais", entre Clint Eastwood e Lee van Cleef, em que, durante minutos, um atira no chapéu do outro para ver quem tem melhor arma e pontaria.

Este é outro e decisivo aspecto do faroeste leoniano: ele substitui a ação contínua dos velhos caubóis por uma mise-en-scène operística, barroca, que por sinal não deixa de lembrar os filmes de cangaço feitos por Glauber Rocha, especialmente "Deus e o Diabo na Terra do Sol".

Forte e original

O correr do tempo é decisivo, em todos os sentidos, para o cinema de Sergio Leone. Por um lado, na medida em que se sucedem, os filmes da célebre trilogia ("Por um Punhado de Dólares", 1964, "Por uns Dólares a Mais", 1965, e "Três Homens em Conflito", 1966) permitem ver um realizador forte e original. Com isso, ele acaba se impondo nos EUA e é convidado a dirigir lá mesmo a superco-produção "Era uma Vez no Oeste" (1968).

O quadro é o momento de implantação das ferrovias no Oeste, mas o cerne da questão é outro. Trata-se de uma "vendetta", mais uma, à moda siciliana. Com recursos e segurança, Leone leva o pendor operístico às últimas conseqüências. Para puxar um revólver leva-se quase um minuto.

A música de Ennio Morricone parece compreender perfeitamente o que o diretor pretende: ela se encaixa no tempo e parece fazer parte do destino mesmo das imagens.

Os tempos eram outros, é claro. O cinema ainda não era a diversão estritamente infanto-juvenil em que se transformaria a partir do fim dos anos 70. Leone existia ao lado de Antonioni.

Em um registro mais irônico e visualmente menos impressionante, sua próxima parada seria o México, palco de "Era uma Vez na Revolução", em que cria no entanto momentos antológicos. O mais célebre deles é possivelmente aquele em que James Coburn, um mercenário chegado em explosivos, abre sua capa - como um exibicionista poderia ter feito - e dá a ver seu arsenal ambulante.

A última parada registra uma ligeira mudança de rota. "Era uma Vez na América", em 1984, trata da amizade e rivalidade entre gângsteres judeus nos Estados Unidos, em um tom que associa o grandioso da representação ao lirismo da elegia.

No total, a carreira de Sergio Leone limitou-se a meros oito filmes. Na maioria deles, no entanto, o diretor italiano iluminou o cinema com um olhar original, uma força inesperada, uma convicção quase inabalável nas imagens que criava e uma vitalidade que trouxe do cinema popular e que soube restituir ao espectador. Gordo, Leone não caminhava depressa. Mas sabia muito bem aonde ia. Não é tão freqüente assim.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 21 de setembro de 2004)

SERGIO LEONE FILMA FAROESTE SEM FRONTEIRAS
INÁCIO ARAUJO


O bom, o mau, o feio: Clint Eastwood, Lee van Cleef, Eli Wallach. Um trio de ferro do "western spaghetti", dito aqui "Três Homens em Conflito". Nada mais do que três caçadores de dinheiro, sendo que os dois primeiros tendem a falar pouco. A diferença entre eles é que Clint desenvolve um tipo mais sombrio, e Van Cleef, um mais malandro. O terceiro, o de Eli Wallach, difere bastante dos dois pelo que tem de falante, gabola, traiçoeiro.

Os três representam muito bem essa paixão que tinha Sergio Leone de reencontrar os tipos do Oeste, de recriá-los de acordo com a experiência de um italiano que os conheceu não como personagens de uma mitologia fundamentada na história, mas de uma mitologia cinematográfica.

Essa paixão é que transparece neste filme rodado em 1966. Pois, se o cinema é viagem e linguagem universal, por que prender o faroeste em fronteiras nacionais? Leone sabia das coisas.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 26 de julho de 2006)

COM LEONE, O MUNDO RODA AO CONTRÁRIO
INÁCIO ARAUJO


Onde já se viu: um autor italiano que vai aos EUA rodar um faroeste! Com efeito, o mundo roda ao contrário, em "Era uma Vez no Oeste". Sergio Leone já havia inventado o "western spaghetti", uma suprema heresia em que italianos reconstituíam o Velho Oeste, em geral na Espanha ou com atores de segunda linha ou então em final de carreira.

Mais do que isso: já não se trata de imitar o velho e bom faroeste americano. Tomemos a primeira seqüência de "Era uma Vez": três pistoleiros esperam, na estação, pela chegada de um trem. Ninguém fala. Até que o trem chega, trazendo "a vítima". Ok, a cena não é em si original. Mas o tempo que Leone lhe imprime, sim. Cada movimento, cada aspecto da paisagem parece ter um peso.

Tudo o que vem a seguir parece corroborar essa impressão. O faroeste é um gênero épico, sem dúvida, mas o épico de Leone é diferente: tem um quê romano, um ar de Maciste, uma grandeza do passado.

Neste filme sentimos menos aquela sensação que outros faroestes de Leone proporcionam, de estarmos diante de um território de sonho. Ou seja: o Oeste já não é uma experiência direta (de americanos às voltas com o mito da América), mas com cinéfilos que vivenciam aquela mitologia intensamente. Leone desta vez pôs os pés na América, como um invasor disposto não à bárbara pilhagem, mas à saudável troca. Obra-prima.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 11 de março de 2007)

LEONE ALIA REVOLUÇÃO E CONTO DE FADAS
INÁCIO ARAUJO


É possível pensar que todos os faroestes de Sergio Leone fossem nada mais que uma preparação para "Quando Explode a Vingança", o mais desvairado de todos os seus filmes.

Mas é possível pensar, mais ainda, que os ventos de 68 tenham soprado na preparação deste filme que promove, no México revolucionário, encontro entre o bandoleiro Miranda (Rod Steiger) e Sean Mallory (James Coburn), revolucionário e emérito dinamitador.

Diga-se que a entrada de Coburn, quando abre sua capa de Antonio das Mortes, como um exibicionista, e mostra o arsenal ali contido, é antológica. Passemos, pois a associação destina-se, em princípio, ao assalto a um banco.

Faz tempo que não vejo o filme, mas não o bastante para esquecer que um de seus títulos originais foi "Era uma Vez... a Revolução". Profético, em parte, porque associa a idéia de revolução a um conto de fadas, cuja existência só pode acontecer, no entanto, na imaginação.

De certa forma, estamos como que numa seqüência de "Vera Cruz", o faroeste de Robert Aldrich, em que, na mesma revolução, se encontravam Gary Cooper e Burt Lancaster. Aldrich inaugurou o faroeste de violência extrema. Leone parece disposto a dinamitar o que encontra pela frente. Algumas cenas são espetaculares, outras de rolar de rir. O conjunto é a rever: será que se agüenta ou que o tempo também o esfacelou?

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 28 de outubro de 2007)

"ASSIM ESTAVA ESCRITO" REVELA LADO CRUEL DO CINEMA
INÁCIO ARAUJO


Pode-se definir "Assim Estava Escrito", para resumir, como o mais realista dos filmes sobre cinema. Ninguém se surpreenderá, portanto, que seja também o mais cruel. Tudo começa quando um produtor a perigo tenta reunir seu velho grupo: um diretor célebre, uma atriz famosa. Será que alguém dará força ao traste?

Porque é um traste esse Kirk Douglas do filme de Vincente Minnelli. É o que saberemos logo depois, no "flashback". Quando ainda candidato a produtor, Kirk trai o amigo, candidato a diretor, e faz o que pode e o que não pode para a jovem atriz, Lana Turner, se apaixonar por ele e ajudá-lo a subir.

E o que poderia compensar tamanhos desvios de caráter? A percepção de que o negócio dos sonhos, o cinema, tem um aspecto bem concreto, bem feio. É dessa feiura que se cria, de certo modo, o maravilhoso.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 23 de agosto de 2009)

THRILLER DE JOSEPH LOSEY DESAFIA O ESPECTADOR AO USAR CLIMA DE PESADELO
INÁCIO ARAUJO


Não dá para acreditar em nada de "A Sombra da Forca". Um pai alcoólatra, o escritor David Graham (Michael Redgrave), que chega em Londres, vindo do Canadá, 24 horas antes da execução do filho. A estranha recepção que lhe dão os Stanford (rica família do melhor amigo do rapaz). O advogado ambíguo, que nunca se sabe se está defendendo ou atacando o seu constituinte. A busca desesperada do pai por evidências para livrar o filho da pena capital.

Não dá para acreditar em nada, digo, até percebermos que nada aqui aspira à realidade. A interpretação dos atores é crispada (e por vezes se tem a impressão de que Joseph Losey escolheu os piores ou menos adequados atores da Inglaterra).

As peripécias policiais baseiam-se menos em provas e achados espetaculares do que no poder de convicção dos diversos envolvidos. Mesmo a luz de Freddie Francis está mais próxima de um filme de terror do que de um thriller policial.

Se não aspira à realidade, "A Sombra da Forca" propõe-se, então, como um pesadelo e é lá que vive e faz sentido. E só assim pode ser compreendido, pois Losey dá-se ao luxo de trabalhar uma intriga que não fecha, não esgota todos os dados que lança mas deixa-os um tanto soltos, como fiapos de memória que cabe ao espectador, em grande parte, recolher.

Assim, esse estranho filme nos propõe uma espécie de "whodunit" (quem é o culpado?), pois sabemos que o verdadeiro culpado está entre as pessoas em cena, mas não é bem isso. Propõe uma espécie de mergulho na psicologia dos personagens.

Mas também não é bem isso. Há momentos em que tudo parece nos escapar, exceto a angústia de David, de quem também as coisas escapam à medida em que se aproxima o momento da execução.

Nos fazer participar intensamente desse pesadelo em que David Graham joga toda sua vida não é o menor dos méritos de "A Sombra da Forca". É uma pena: apesar da boa qualidade das imagens, o DVD chega praticamente sem nenhum extra.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 23 de agosto de 2009)