Canto do Inácio

Friday, May 22, 2009

ERIC ROHMER PERMITE QUE O DISCURSO SEJA COTEJADO PELA IMAGEM
INÁCIO ARAUJO


O título engana: "Minha Noite com Ela" (1969) sugere uma safadeza que esse filme não tem. Ou até tem, em parte, mas não aquela em que se pode pensar a partir do título.

Como é um filme de Eric Rohmer - o quarto da série "Contos Morais" -, a maior parte do tempo conversa-se. E como o protagonista-narrador (Jean-Louis Trintignant) é católico, a fé é central nas discussões com o amigo Vidal (Antoine Vitez) e mesmo com Maud (Françoise Fabian). A fé e, mais precisamente, Pascal, que o narrador renega por seu catolicismo intransigente.

Tudo aqui também diz respeito à sedução. Pois o narrador decidiu que vai se casar. E vê na igreja Françoise (Marie-Christine Barrault), a garota com quem decidiu casar, embora ela nem saiba de sua existência. E Maud pretende seduzir o narrador. Divorciada, livre, bela, ela tem tudo que um homem poderia querer - por uma noite, pelo menos. Mas transar com Maud seria, para ele, uma traição a seus sentimentos, à sua fé, a suas convicções amorosas.

No entanto, Maud é sedutora, e a dúvida é: o homem cederá ou não? Sabe ele, de fato, o que quer? Questão mínima, embora relevante. São assim os "Contos Morais": alguém tem uma crença; uma dúvida vem colocá-la em questão. Estamos no domínio da vida cotidiana, a mais normal possível, vendo à nossa frente pessoas também normais.

O narrador supõe que é possível viver em contradição (ter fé e amar as mulheres) sem deixar de ser católico. Isso implica se abrir à ambiguidade. E é disso, a rigor, de que trata o filme. Não apenas a suposta na questão imediata que enfrenta o protagonista, mas a outra que vai da palavra à imagem.

A maior crítica que se fez durante um bom tempo a Rohmer foi a de que seus filmes eram tão literários que nem precisariam ser filmados. Mal-entendido típico, que se abate sobre filmes em que se fala muito. Talvez seja possível ver de outra forma: o que se fala não conta tanto quanto as fendas que o discurso revela, sua capacidade de ser cotejado pela imagem.

Porque as imagens são, aqui, o discreto fundamento de tudo. Imagens que se devem, no caso, a outro mestre, Nestor Almendros.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 16 de maio de 2003)

JONATHAN DEMME SINTETIZA O EMBATE DE ERAS
INÁCIO ARAUJO


Quando se vê "Totalmente Selvagem", o principal é a data: 1986. Não que todo o resto não o seja. Mas, neste filme de Jonathan Demme, o que acontece é a história de um yuppie que dá carona a uma garota "selvagem" (isto é: ainda imbuída dos ideais dos anos 70).

O que vemos é o crepúsculo de uma era e o surgimento de outra. A garota (Melanie Griffith) representa a cultura do sexo, drogas e rock, da busca da liberdade, de uma urgência de viver. Era o que estava entrando em recesso.

Quase inadvertidamente entravam em cena os homens sérios, os neoliberais, para quem a única coisa urgente era fechar o negócio que tinham a fechar etc. É o sujeito (Jeff Daniels) que dá a carona e vê sua vida ser transformada pela menina. Na vida real, o yuppie é quem estava entrando na moda.

Chegamos a 2008, com crise cavalar, a Bolsa e os bolsos a perigo. Parece acabar mais uma era, a do pós-fim da história, talvez?

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 09 de outubro de 2008)

Monday, May 04, 2009

"OS PÁSSAROS" EXPÕE IMPERFEIÇÃO HUMANA
INÁCIO ARAUJO


De todos os filmes de Alfred Hitchcock, "Os Pássaros" é possivelmente o mais original, já que a ideia de culpa -tão presente em seus filmes- é um tanto distante neste trabalho.

Talvez seja o caso de ver aqui, antes de mais nada, a proeza técnica como seu móvel principal, a saber: o desafio de promover a transformação de pacatas aves em entes aterrorizantes.

Tudo que vemos nos pássaros, desde as imagens franciscanas, é solidariedade, bondade, trato fácil com o humano. É tudo que as aves de Hitchcock passam a negar aos homens, ao contrário: tornam-se feras.

Retrospectivamente, é possível ver aí uma revolta da natureza contra o homem. Mas teria esse aspecto ecológico pertinência em 1963? Não importa muito, pois as grandes obras vão encontrando seu sentido conforme o tempo.

De todo modo, o mistério dos pássaros e sua revolta permanecem, duplicados pelas cenas de extremo sadismo a que é submetida a atriz principal, Tippi Hedren, como a nos lembrar que, na cabeça de Hitchcock, a beleza (feminina) não pode existir impunemente, pois afinal é o que nos inspira (a nós, homens) pensamentos impuros.

A imperfeição do homem e sua dificuldade de conviver com a beleza da perfeição (e da criação) podem muito bem ser um tema privilegiado de "Os Pássaros", essa obra-prima.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 03 de maio de 2009)

Friday, May 01, 2009

FILME PREVIU A RELEVÂNCIA DE MARTIN SCORSESE
INÁCIO ARAUJO


O que existe de único em determinadas épocas do cinema é a liberdade com que os filmes são feitos. Quem se der ao trabalho de comparar "Sexy e Marginal" com os filmes que Martin Scorsese fez depois verá que, à parte o aperfeiçoamento do artesanato, desenvolve-se também o peso da produção.

Naquele momento, 1972, ele era um iniciante. Refilmava, praticamente, o "Bonnie & Clyde" de Arthur Penn, fixando-se em Boxcar Bertha e Big Bill Shelly, seu namorado, dupla de assaltantes de trem da Depressão dos anos 1930.

Existe um quê de rebeldia perpassando o conjunto: o filme e a história que ele narra. Falar dos bandidos é uma maneira de demonstrar sua inconformidade com o mundo em que vive. É "passar a sujo" "Bonnie & Clyde", parasitando seu sucesso e, sem contestá-lo, oferecendo uma versão segunda. Aqui se vê, numa pequena produção, que Scorsese não seria qualquer um. O tempo confirmou a primeira impressão. E o filme continua em pé.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 14 de julho de 2008)

"CAMINHOS PERIGOSOS" MOSTRA SCORSESE LIVRE
INÁCIO ARAUJO


Ninguém dava muita bola para Martin Scorsese quando fez "Caminhos Perigosos", em 1973. De resto, ninguém dava mais atenção a Robert de Niro ou a Harvey Keitel, hoje estrelas, do que a David Proval, o terceiro protagonista do filme.

Toda essa gente estava começando a carreira e a história dos amigos de Nova York, de Little Italy, mais precisamente, cuja grande ambição é ser um gângster. Essa é a ambição de Harvey Keitel, o amigo mais astuto, o cérebro que comanda ou tenta comandar Johnny Boy (De Niro).

Para Scorsese, o que importa mostrar no gangsterismo, desde então (e cada vez menos), é seu cotidiano, a boçalidade, a insignificância dessas pessoas. É impossível para elas ter grandeza, e quanto mais tentam, mais se revela a mixaria.

O que esse filme de começo de carreira tinha, além da pequena produção, era uma liberdade que hoje Scorsese perdeu. Afinal, certo está Eric Rohmer: o sucesso pode ser uma engrenagem terrível.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 11 de julho de 2008)