Canto do Inácio

Thursday, April 30, 2009

"ALCATRAZ" REFLETE SOBRE A LIBERDADE
INÁCIO ARAUJO


Robert Bresson escreveu, em seu "Notas sobre o Cinematógrafo", que não devemos temer uma má reputação, e sim uma boa reputação que não possamos sustentar.

A frase me vem à memória quando penso em John Frankenheimer, de quem se vê "O Homem de Alcatraz". Que relação tem o filme com "Ronin" (1998), o último filme dele a obter repercussão? Nenhuma que eu identifique.

"Ronin" é só um filme comercial, "O Homem de Alcatraz", reflexão sobre o sentido da liberdade a partir do destino de um homem que as circunstâncias levaram ao cativeiro.

"Ronin" vai empurrado pela barriga, como se ouvisse o ponto batendo a cada seqüência. "O Homem", ao contrário, é feito do desejo de mostrar, de trazer o inusitado à tela.

É verdade que, antes de "Ronin", Frankenheimer criou um fascinante "George Wallace" para a TV, mas esse deve muito ao personagem (o ex-governador racista do Alabama que, diz o filme, nunca foi pessoalmente racista).

Pode-se dizer que o melhor de JF está nos anos 60, um pouco nos 70, quando conseguiu trazer a inquietude da câmera de reportagem para a ficção. Nesse momento, ele fazia brilhar até títulos comerciais, como "Grand Prix": até hoje, com toda a tecnologia, ninguém filmou corridas de automóvel tão bem. Mas, nas últimas décadas, o diretor parece viver de uma reputação que já não se esforça para sustentar.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 03 de junho de 2007)

CINEMA PÕE VILA DO TEXAS NO CENTRO DO MUNDO
INÁCIO ARAUJO


Estamos em Anarene, pequena cidade do Texas, EUA, na virada dos anos 50, e o cinema local prepara-se para sua última sessão.

O cinema está acabando. O cinema como grande diversão, capaz de encher salas com mil lugares, em todo caso. Peter Bogdanovich pode até lamentá-lo, mas esse não é, por incrível que pareça, o ponto memorável de "A Última Sessão de Cinema".

Mesmo porque Anarene também parece estar prestes a ser dizimada. E Anarene é o centro do mundo. Porque o centro do mundo é o lugar onde estamos, fazemos amizade, amamos e sofremos. O mundo são as pessoas que conhecemos e que se tornam referência.

Tanto mais se estamos crescendo, como a garotada do filme. Tanto mais se experiências profundas vão acontecer, indiferentes à indiferença do universo por Anarene. Um filme delicado, doce, amargo.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 10 de março de 2008)

Friday, April 24, 2009

CAPRA MUDA O TOM EM FILME COM CARY GRANT
INÁCIO ARAUJO


Boa parte do humor de "Este Mundo É um Hospício", de 1944, vem do contraste entre duas simpáticas velhinhas e os atos que costumam executar, leia-se, envenenamentos por arsênico.

A família toda parece bem maluca, na verdade. E é nela que vai aparecer o único cara razoavelmente são, na pessoa do crítico teatral Mortimer (Cary Grant). Ele tentará incutir um pouco de razão na vida das velhinhas e é a partir de então que o "nonsense" se instala de vez nesta comédia em que Frank Capra parece, por uma vez, esquecer seu velho hábito do individualismo extremo e da oposição feroz às intervenções do Estado.

Talvez fosse esse um sinal claro de que, com a guerra, não era mais tempo de discutir questões de política interna. Talvez, também, a demonstração de que a política do "New Deal" havia, naquele momento, superado de uma vez a Depressão. Com a guerra encaminhada, rir talvez já não fosse só um remédio. E é para rir muito.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 01 de setembro de 2006)

CAPRA CRIA PROTÓTIPOS DE HOMENS PÚBLICOS
INÁCIO ARAUJO


Ninguém deve condenar um filme por "fazer caricatura" de alguém ou alguma coisa antes de ver as obras de Frank Capra, como "A Felicidade Não se Compra".

Pois Capra não faz senão caricaturas. O banqueiro (Lionel Barrymore) que só quer a empresa imobiliária de que toma conta trabalhando exclusivamente para dar lucros fenomenais não é senão uma caricatura. Seu oponente (James Stewart) julga que a empresa deve confiar nas pessoas e servir à população.

Podemos dizer que é outra caricatura. Mais justo, no entanto, é perceber que aí estão protótipos perfeitos do que imaginamos como homens públicos - bons ou maus. É improvável que algum deles exista em estado puro. Pouco importa. O essencial é que entendemos vendo este filme, mais do que qualquer outro, o que é o bem comum e o que não é. E olha que esse nem é o assunto principal do filme, que vem com a questão: o que é e quanto vale a vida de um homem?

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 09 de setembro de 2008)

Thursday, April 16, 2009

PROFETA ESTÁ ENTRE O MODERNO E O ARCAICO
INÁCIO ARAUJO


José Mojica Marins é o cineasta-antropófago por excelência. Inventou o terror brasileiro, mastigou a influência recebida desde que via filmes, na infância. Criou uma obra original.

O terror de Mojica, o Zé do Caixão, remete a lendas que correm nos lugarejos interioranos. Zé do Caixão é antes de tudo um iconoclasta que pratica atos tipo comer carne na Sexta-Feira Santa. Na época, anos 60, o território da crendice popular era amplo e profundo - embora nas metrópoles já estivesse em decadência.

É na tensão entre velho e novo, crendice e industrialização que se instala o terrível terror de Mojica. Ao contrário do horror anglo-saxão, Mojica não mobiliza nossos fantasmas. A ênfase de seus filmes não vai, digamos, para os mortos que voltam à vida; ao contrário: a passagem para o mundo dos mortos é que é problemática.

Esses aspectos convivem com a mania de grandeza do Zé, que vive em busca da mulher perfeita para procriar o filho perfeito.

Não se trata de uma variante do super-homem, seja qual for. É mais a versão delirante do velho "sabe com quem está falando".

Mojica fala a uma população pobre, a quem os poderosos infundem horror. Ele observa as crendices como formas contraditórias: são defesas contra o poder dos poderosos, mas inviabilizam a esperança de alforria.

Daí o ar ambíguo de Zé do Caixão: com sua imensa cartola negra, ele é um pouco o iluminista que exalta as descobertas da ciência contra o atraso religioso.

É, ao mesmo tempo, uma representação cruel do atraso nacional: é uma caricatura do discurso bacharelesco, de uma oligarquia que se acredita aristocracia.

Zé do Caixão é bem menos profeta da fome do que profeta de uma modernidade sempre vislumbrada e nunca alcançada.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 30 de setembro de 1997)

O LUXO DO LIXO
INÁCIO ARAUJO


"Seus bundas-moles! Vocês não têm uma unha do talento desse homem!" A frase de Luís Sérgio Person, dirigida aos alunos da Escola Superior de Cinema, que acabavam de humilhar José Mojica Marins num debate, resume a conturbada trajetória do diretor e ator, criador do Zé do Caixão.

Corriam os anos 60, mas Mojica já começava a merecer o título da biografia que André Barcinski e Ivan Finotti lançam: "Maldito".

Zé do Caixão acabava de explodir, com "À Meia-Noite Levarei Sua Alma" (64). Lá estava o coveiro, meio analfabeto, meio nietzschiano, instaurando um inferno à brasileira: improvisado, feito com trucagens primitivas. Mas dotado de uma compreensão visceral do cinema. E, para completar, um arrasador sucesso de público.

Um gênio ou uma besta? As opiniões dividiram-se. Barcinski e Finotti narram a cena ocorrida em um cinema do Rio. Havia um tumulto na sala. O lanterninha saiu desesperado: "Tem um maluco gritando lá dentro". Era um cara de cabelos desgrenhados, camisa aberta, berrando: "Puta que pariu, esse cara é um gênio".

O maluco da platéia era Glauber Rocha, que desde então integrou-se ao seleto grupo de defensores de Mojica: além de Person, Roberto Santos, Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach e o crítico Salvyano Cavalcanti, entre outros.

Apesar de encontrar defensores de peso, havia um problema: como integrar Mojica a um cinema então dominado pelas preocupações sociais do cinema novo?

Talvez a melhor análise da situação tenha sido feita por Cavalcanti no extinto "Correio da Manhã": "(...) analistas desapaixonados irão reconhecer: a eclosão do cinema de Marins representa fato novo, da mesma dimensão que hoje se tem como pacífico a respeito de Humberto Mauro, cineasta também puro, intuitivo, genuíno em sua brasilidade e na abordagem formal - e durante tantos anos subestimado pela crítica, então preocuapada em discutir as teorias alienígenas, enquanto descriam (...) das coisas brasileiras".

A questão de como inserir Mojica numa tradição é, em parte, o assunto desta biografia. O que fazer com um fulano criado na Vila Anastácio, que nem escrever um roteiro conseguia? No mais, um possível trambiqueiro, dono de uma suspeita escola de interpretação? Isso é gênio que se apresente? Barcinski e Finotti demonstram que não existe incompatibilidade entre a inteligência, a capacidade de compreender o cinema e apreender o Brasil e tudo o mais.

Não existe incompatibilidade nem mesmo entre suas virtudes artísticas e a capacidade autodestrutiva, que acabou por levá-lo quase à miséria justamente nos momentos em que, com o sucesso, tinha tudo para enriquecer.

Então, fez de tudo: TV, quadrinhos, marchas carnavalescas - sem falar dos filmes e da escola de atores. Enfiava os pés pelas mãos e saía do negócio com mãos abanando, um processo nas costas ou a fama de picareta reforçada.

Não era um homem confiável, sobretudo para a censura, com quem teve relações tensas, a ponto de uma censora afirmar, em seu parecer, que, "se não fugisse à minha alçada, seria o caso de sugerir a prisão do produtor".

O censor Augusto da Costa - beque da seleção brasileira de 1950 - tomou inclusive a liberdade de reescrever a cena final de "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver". Ali, quando Zé do Caixão afundava em um lago, bradando "Eu não creio!", Mojica foi obrigado a redublar a cena, acrescida agora de uma declaração de fé: "Sim, Deus é a verdade!" etc.

Foi a censura, desde que o regime militar endureceu, com o AI-5, que acabou decretando a morte de Zé do Caixão e a decadência de Mojica, então forçado a fazer filmes de encomenda.

Zé só ressurgiria nos anos 90. Enquanto Mojica batalhava no Brasil, inutilmente, para filmar, Zé do Caixão emplacava nos EUA, com o nome de Coffin Joe. Essa é a sina do aventureiro.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 25 de abril de 1998)

Wednesday, April 08, 2009

'HANA-BI' CONFRONTA A VIOLÊNCIA E O VAZIO
INÁCIO ARAUJO

Takeshi Kitano é um desses cada vez mais raros factótuns do cinema. Dirigiu, escreveu, montou e protagonizou "Hana-Bi". De passagem, ganhou o Festival de Veneza 98 e aplausos gerais da crítica européia e americana.

Estranha unanimidade para um filme difícil, cujo centro é a estruturação das sequências numa ordem que desobedece a organização linear, embora nem por isso busque a não-linearidade.Sua história pode ser assim resumida: o policial Nishi deixa de participar de uma incursão aos redutos da Yakuza (a máfia japonesa) para visitar a mulher, que tem leucemia, em um hospital. Durante a batida, seu colega Horibe é baleado e torna-se paraplégico.

A partir daí, os destinos de Nishi e Horibe se confrontam. Enquanto o primeiro arrasta a dor da mulher à beira da morte e endivida-se com a Yakuza, Horibe sofre em uma cadeira de rodas. Isso até que Nishi decide assaltar um banco, para arranjar dinheiro para uma viagem com a mulher e acertar as contas com a Yakuza.

Como se trabalhasse pensando em Eisenstein, Kitano não desenvolve toda a ação. Sugere-a. Trabalha seus interstícios: quadros estáticos que se juntam como ideogramas. O próprio título é sintomático. "Hana-Bi" associa as idéias de flores (que Horibe pinta em sua solidão) e armas (que Nishi usa). Flores junto a armas terá o sentido de fogos de artifício.

A função do ideograma, retomada por Eisenstein no cinema mudo, é essa: duas imagens criam uma terceira, que sintetiza as anteriores, mas as ultrapassa. O princípio, interessantíssimo, dá a Kitano um lugar original no cinema contemporâneo, o que não impede o espectador de sentir-se excluído (sobretudo no início) da narrativa e, portanto, de sua reflexão sobre dor e violência.

O filme ganha mais fôlego na segunda metade, quando Nishi organiza sua vingança contra a Yakuza e o mundo. Essa segunda metade poderia, no mais, ser vista como um sofisticadíssimo "Desejo de Matar" ou "O Passageiro da Chuva" (que era um "Desejo de Matar" metido a besta, estrelado pelo mesmo Charles Bronson).

Tudo o que em "Desejo" é um apelo à ordem quase fascista aqui se transfigura na necessidade de Nishi de viver e dar vida às pessoas amadas. Como, é claro, não possui esse dom, Nishi o ritualiza: os fogos de artifício surgem como expressões de um vazio. Nele, entra a ação não como resgate desse vazio - irresgatável -, mas como um movimento que, à falta de sentido, dá à existência sabor.

"Hana-Bi" é um filme por vezes estranho, por vezes familiar. Quando sua idéia consegue ser plenamente percebida, entusiasma. Em outros momentos, ameaça ficar enfadonho. Nunca vulgar.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 28 de agosto de 1998)