Canto do Inácio

Saturday, February 28, 2009

POST FINAL?
INÁCIO ARAUJO

Caros amigos,

Estou começando um blog no Uol, o que me força a suspender os posts que mandava para cá de tempos em tempos.

O Diego, que já tinha conhecimento disso, continuará aqui no "Canto", já que não pretendo usar os textos da Folha no blog. Enfim, só para dizer que o blog novo se chama "Cinema de Boca em Boca" e espero que vocês dêem uma espiada por lá de vez em quando.

Está só começando, mas achei bem divertido. Até breve.

Tuesday, February 24, 2009

BOYLE FORÇA A MÃO E TRANSFORMA A ÍNDIA EM ESGOTO A CÉU ABERTO
INÁCIO ARAUJO


Depois de ver "O Leitor" era justo imaginar que nada pior poderia acontecer. Engano. Depois havia ainda "Quem Quer Ser um Milionário?", como a mostrar que o Oscar 2009 busca ser a pior edição de todos os tempos.

Soube-se que Danny Boyle, promessa do cinema há pouco mais de dez anos, quando se esforçava para parecer um Gus van Sant inglês, ficou ofendido ao ver seu filme comparado com "Cidade de Deus". Mas o que há de melhor no novo Boyle é uma distante lembrança do filme de Fernando Meirelles.

Com efeito, logo no início há a favela, a criançada, as perseguições, a fotografia metálica, a câmera nervosa. Estamos na Índia, ex-colônia britânica. Seria possível dizer que mais valia cineastas ingleses tratarem das mazelas inglesas, que não são poucas, como a permissão para a polícia meter bala em brasileiros impunemente.

O fato é que em "Quem Quer Ser" não estamos em Londres, mas em Mumbai. Estamos às voltas com Jamal, o garoto do chá de um serviço de televendas, que se inscreve num programa de perguntas e respostas famoso por derrubar os mais cultos da Índia. Para surpresa geral, ele começa a ganhar prêmios.

Então a polícia intervém: Jamal é preso e torturado para confessar que fraude pratica. Depois de muita tortura, saberemos, nós e o policial que torturava (subitamente convertido em ouvinte atento do rapaz), que cada resposta foi aprendida ao longo da vida.

Fossa sanitária

Esse é o começo, e a coisa já é horrível. Para que Jamal ganhe mil rúpias ou algo assim seremos submetidos a uma das cenas mais desagradáveis da história do cinema: o menino que ficou trancado numa fossa sanitária percebe que a única possibilidade de ver seu ídolo, um cantor ou algo assim que acaba de chegar, é pular nas fezes acumuladas embaixo dele.

Ele não pensa duas vezes: pouco depois chega triunfal perto do cantor, coberto de fezes até a cabeça, pedindo um autógrafo.

Daí sabemos que é bom ficar preparado: a cada resposta corresponderá um episódio do tipo -e a coisa vai a 20 milhões de rúpias ou, pior, duas longas horas de filme. Nesse intervalo veremos a mãe de Jamal pegar fogo; Jamal, o irmão e a amiguinha serem recolhidos por um gângster, que faz crianças pedirem esmola; um desses meninos ter os olhos arrancados para comover os passantes. Vista por Boyle, a Índia é um esgoto a céu aberto, moralmente inclusive. Nesse lodo viceja a alma pura de Jamal, uma mistura do estoicismo do dr.

Kimble de "O Fugitivo" com a ingenuidade de Forrest Gump. Com ele entramos no terreno do prodígio. Jamal é puro, bom e forte o bastante para sobreviver. O que o torna assim? Algo de sua natureza, ou da ordem do destino. Ou seja, embora use a mão pesada para os problemas indianos, a explicação do caráter de seu herói é metafísica. Jamal passa incólume por tudo, como esse mundo infame em que vive não o afetasse.

Para fechar esse abacaxi, ocorreu a alguém transformar tudo em musical (é como o filme termina -e não há problema em saber, não tem nada a ver com a história): é como se a inconsequência final livrasse o filme da infâmia. Não livra.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 20 de fevereiro de 2009)

Sunday, February 22, 2009

FILME DOS COEN É RECICLAGEM OPORTUNISTA
INÁCIO ARAUJO


Filmes podem enganar. A primeira visão, e também a segunda, de "Onde os Fracos Não Têm Vez" me impressionaram vivamente: o filme dos Coen parecia vibrar a cada cena e, embora a situação central (sujeito acha dinheiro que não lhe cabe e é perseguido implacavelmente) seja banal, a figura de Javier Bardem, o demoníaco perseguidor, é memorável.

Com o tempo, no entanto, as virtudes se distanciaram. A memória me restitui um filme bem à moda dos Coen: reciclagem oportunista de um cinema antigo, sem nada de novo em especial a dizer.

Já seu filme seguinte, a comédia "Queime Depois de Ler", me impressionou muito menos, mas com o tempo cresce na lembrança e na estima, e a situação central (mulher arma um grande golpe apenas para fazer as mil plásticas a que a induz seu médico) parece dizer muito mais sobre o mundo de hoje do que o outro.

É uma experiência absolutamente subjetiva, mas talvez nem tanto: quem chega hoje ao cinema mal pode acreditar no prestígio que um dia teve William Wyler e nem desconfia que Hitchcock era, para todos os efeitos, só um cineasta comercial. Hoje a publicidade é agressiva na busca da mitificação de "autores". Mas muita água vai rolar antes que saibamos qual o lugar dos Coen nessa história (a do cinema).

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 22 de fevereiro de 2009)

Thursday, February 19, 2009

IRMÃOS MARX DESAFIAM ROTINA DOS SENTIDOS
INÁCIO ARAUJO


Durante o Maio de 68 em Paris, alguém escreveu numa parede: "Sou marxista, tendência Grouxo". Então estava tudo claro: havia os stalinistas, os maoístas e os grouxistas. Os dois primeiros grupos disputavam o poder. O último lutava para desarmá-lo.

Não para derrotá-lo, porque é impossível, mas para deixá-lo desconcertado. Assim era com os irmãos Marx, sobretudo seu trio central, Grouxo, Harpo e Chico. Em cada movimento, em cada frase, eles tocam um lado inesperado das coisas, desafiam a rotina dos sentidos e do raciocínio.

Em "O Diabo a Quatro", Rufus T. Firefly (Grouxo) se torna alto mandatário da Freedonia, um paiseco, graças à sua benfeitora, Margaret Dumont.A ela, aliás, dedicará uma das réplicas antológicas do filme ("Vamos defender a honra desta mulher. Já que ela mesmo não o faz"). O resto, nesta comédia de Leo McCarey (um baita reaça, aliás), é completa anarquia.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 19 de fevereiro de 2009)

Friday, February 13, 2009

HURT DÁ ROSTO À INEXISTÊNCIA EM "TURISTA ACIDENTAL"
INÁCIO ARAUJO


Macon Leary escreve guias de viagem e detesta viajar. Ele tem o rosto distendido e entediado de William Hurt. De certa forma, o papel em "O Turista Acidental" é o maior momento de Hurt no cinema.

Porque em "O Beijo da Mulher Aranha", que lhe deu um Oscar, seu personagem existe, como em outros tantos em que foi indicado. Aqui tudo é mais difícil, pois é de inexistência que se trata. Macon Leary não tem o que fazer na vida, e a arte do ator - e do diretor Lawrence Kasdan - consiste em dar-lhe vida, apesar de tudo.

Quanto a Kasdan, convém lembrar que seu forte é a sensualidade. Desde "Corpos Ardentes" é o aspecto que mais torna bem-sucedidos seus filmes bem-sucedidos. Sair-se do desafio que era representar a vida desse homem, seus impasses, seus vislumbres não era coisa fácil. Uma aposta que levou sem entregar os pontos para os apelos habituais da indústria. Será por isso que desapareceu?

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 18 de novembro de 2008)

Wednesday, February 11, 2009

O CINEMA SE QUERIA ARTE NOS ANOS DE RESNAIS
INÁCIO ARAUJO


Talvez haja quem ache tudo isso mentira. Mas existiu um tempo em que os filmes de Alain Resnais eram esperados com ansiedade e exibidos correntemente nos cinemas.

Eles eram até bem mais experimentais do que "Amores Parisienses - Aquela Velha Canção", em que as pessoas se encontram e fazem o filme virar um musical de evocação de antigas canções. É verdade que nos anos de ouro de Alain Resnais o cinema se queria uma arte. Acessível a todos, mas arte. Hoje ainda vemos os filmes de Resnais como arte, mas, como se por isso, eles não fossem divertidos.

Em todo caso, sua sorte é melhor que a de Paul Schrader, que fez belos filmes - entre eles, "Gigolô Americano", cujo título dispensa sinopse. O protestante Schrader sumiu do mapa, na prática em todo caso, consumido pela indústria feroz em que o cinema transformou-se.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 05 de dezembro de 2008)

Monday, February 09, 2009

A MUSA QUE INTRIGA
INÁCIO ARAUJO



"A Bela Intrigante" é um filme difícil de recomendar: dura quatro horas e poucas coisas acontecem. E o que acontece não é, em princípio, tão emocionante: um pintor pinta seu modelo.

Mas seria delicado não recomendar esse filme sobre a arte e sua dificuldade. É a obra-prima de Jacques Rivette, um cineasta difícil que parece ter construído sua obra para chegar aí. Se não basta, a musa e modelo é musa de qualquer homem sensato, Emmanuelle Béart.

O primeiro argumento pode não colar. O segundo, é irrespondível.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 24 de maio de 1999)

Wednesday, February 04, 2009

CRISE TORNA "E O SANGUE SEMEOU A TERRA" ATUAL
INÁCIO ARAUJO



Já se falou bastante sobre o discurso de posse de Barack Obama. Não vi em nenhum lugar que a ênfase dada aos valores remetia em linha reta ao faroeste. Uma linha reta, sem dúvida, mas não pacífica.

Também o Velho Oeste viveu (no cinema) a tensão entre o individualismo e a inserção social (simplificando: republicanos e democratas). "E o Sangue Semeou a Terra" é um dos pontos altos dessa discussão (e, por extensão, da obra de Anthony Mann). Existe ali uma caravana que precisa receber víveres para poder se instalar e trabalhar. Ocorre, no meio disso, uma corrida do ouro, que faz os víveres se valorizarem absurdamente.

A opção se coloca para o caubói James Stewart: ficar ao lado do trabalho produtivo da comunidade ou do enriquecimento predatório? Essa questão não esgota este filme genial, é claro, mas está lá. E a crise de agora, em que a ganância joga um papel relevante, torna-a mais atual do que nunca.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 03 de fevereiro de 2009)