Canto do Inácio

Monday, September 29, 2008

NEWMAN GOSTAVA DO LADO DOS PERDEDORES
INÁCIO ARAUJO


Dos quatro galãs que formaram a primeira grande geração lançada pelo Actors Studio nos Estados Unidos, Paul Newman foi o único a ter uma vida longa e bem resolvida. James Dean morreu num desastre de automóvel. Montgomery Clift morreu em 1966, dez anos após um acidente de carro - no que muitos chamaram de "o mais longo suicídio da história". Marlon Brando morreu mais idoso, tendo vivido o bastante para deformar sua figura e testemunhar a infelicidade dos filhos.

Como os outros três, no entanto, sua carreira cinematográfica floresceu rapidamente. Em um de seus primeiros filmes, já chamava a atenção como o protagonista de "Marcado pela Sarjeta" (1956), biografia do boxeador Rocky Graziano.

Em 1958 faria "Gata em Teto de Zinco Quente", ao lado de Elizabeth Taylor. Newman começava a marcar como o jovem rebelde, por vezes um tanto perdido e com um quê retraído que se expressava em seus olhos azuis. Mas era ao mesmo tempo intransigente, como se as virtudes morais falassem nele mais alto do que a força física.

"Gata em Teto de Zinco Quente" abriu, no mais, uma série de indicações frustradas ao Oscar. Outras cinco se seguiriam antes que vencesse finalmente, por "A Cor do Dinheiro" (1986), em que reencarnava o jogador de bilhar Eddie Felson, criado no filme de 1961.

Nessa altura, Newman já havia ganhado até aquele Oscar honorário reservado, habitualmente, aos casos perdidos, aos que nunca vão passar de indicados para vencedores. Isso casava bem com a imagem liberal de Newman, que com freqüência optava por ficar do lado dos pobres, dos perdedores. Um ótimo exemplo dessa imagem - que também o levou a uma indicação ao Oscar - está em "O Veredicto" (1982), de Sidney Lumet, em que faz um advogado que enfrenta uma banca de notáveis juristas num caso de má conduta médica.

Mas antes, em 1966, fez uma parceria infeliz com Hitchcock, em "Cortina Rasgada".

Trabalhando com outros diretores de primeira, como Richard Brooks ou Martin Ritt, Newman se dava melhor, assim como na sua fase mais descontraída, quando fez "Butch Cassidy" (1969) e "The Sting" (1973) com Robert Redford e o diretor George Roy Hill.

Muito rico graças ao cinema, criou a Newman's Own, empresa de alimentos cujos lucros destinava a causa beneficentes. O tempo livre destinava às corridas de automóveis. Depois de uma bem-sucedida carreira como piloto, tornou-se, nos anos 1980, sócio de uma equipe de Fórmula Indy.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 29 de setembro de 2008)

Monday, September 15, 2008

WALTER & WALTER
INÁCIO ARAUJO

Neste incerto blog, uma rara certeza veio do Juliano Tosi: diz ele que do Walter Lima a gente sempre espera que ele parta de um argumento infilmável e chegue com um filme ótimo.

Quem diria que de uma história de peixe que vira em homem ou vice-versa, como “Ele, o Boto”, sairia um filme? No entanto saiu, e belíssimo.

Portanto, é normal que exista alguma decepção, ou menos que isso, um certo muchocho, em torno de “Os Desafinados”, que era uma idéia ótima.

Acho que dentro de algum tempo é desse filme que vou reter diversas imagens. Aquele quarto com duas camas para cinco caras é um achado.

De todos os personagens, talvez o do Rodrigo Santoro seja o único que não cresce o que se espera dele. Ele carrega sem muito interesse, isto é, sem nos interessar muito, a história do cara com duas mulheres, que ama as duas por razões diferentes. Poderia sair muito humor daí, mas só saiu uma coisa amarrada, meio convencional.

A morte de um personagem, não direi quem, a horas tantas, é tremendamente arbitrária. Tanto mais que ela ocorre na ditadura argentina. Ora, o filme tinha driblado muito bem a brasileira, por que ir até a Argentina para cair numa armadilha dessas?

A morte do personagem é uma arbitrariedade dramática. Morre nas mãos da ditadura, mas podia ter caído num barranco ou levado uma bala perdida. Pode-se argumentar que coisas assim aconteceram. Lembro que Borges dizia que a vida pode ser imprecisa, a arte, não.

Dito isso, apesar disso esse filme é um filme.

O filme do Walter Salles é dos melhores dele em vários aspectos, por exemplo a condução dos atores.

Mas a respeito dele foi a Márcia Pastore, minha amiga escultora, quem disse o que de mais certo escutei. Ela preferia que o filme focalizasse uma família de motoboys, ou de crentes, ou de futebolistas.

Como ficou – e ainda com a mãe faxineira -, ficou um mostruário da S. Paulo periférica, uma espécie de amostra grátis da variedade do brasileiro pobre e honrado, desses que nunca chegarão a “pessoa humana”, segundo especificações do STF, o que na real significa: pode baixar o pau e botar algemas que a Justiça aí vai se fazer de morta.

Sim, também pensei que seria muito mais interessante três ou quatro irmãos crentes. É bem mais fascinante, pois há diferenças entre eles, tensões, etc. E ajudaria a compreender a penetração muito grande dessas seitas e seu papel junto aos pobres.

O André Singer, que é sociólogo, escreve um estranho artigo, na Folha, dizendo que a função central do filme é informar ao topo da pirâmide como vive a base. É isso mesmo que o cinema se transformou: uma arte de elite. Para ela compreender como vive sua faxineira, vai ao cinema. Por quê? Não tem capacidade de conversar com ela, de olhar para as pessoas à volta? É quase certo, e é de assustar.

Do ponto de vista do cinema, porém, isso é muito limitativo. Primeiro, reentroniza a suposição de identidade entre realidade e representação. Isso remete nossos filmes à idade média, quase. Mas é o que lhes sobra como “função social”. Esse é um impasse terrível.

Dito isso, o filme tem uma leveza e um lirismo, uma sincera admiração por essas pessoas que sobrevivem a tantos infortúnios, que acaba arrastando a nossa simpatia. A minha, pelo menos.

Agora, entre um Walter e outro vai uma distância. O Lima só faz direito cinema. Quando o filme entra em política, mesmo que marginalmente, se ferra. O Salles, ao contrário, tem um discurso sociológico ali na ponta da língua. Por isso eu prefiro o filme americano dele, me parece o melhor, é o único que não tem teoria, por isso talvez ele se deixou levar pelas coisas e não pelas idéias.

Wednesday, September 10, 2008

VÉBIS
INÁCIO ARAUJO

Apesar do atraso, queria falar um pouco do meu entusiasmo pelo filme do Vébis que passou no Cinesesc.

Não é um filme sem erros. Ex.: aquela lambreta ótima só entra no fim. Problema de produção?

Mas isso é pouco. Assim como quando vi um filme do Duda Valente pela primeira vez, deu uma satisfação imensa. Você olha e vê que o cara sabe o faz, sabe onde quer chegar.

O Carlão chamou muito bem a atenção para os “fade outs” à la Jim Jarmusch. Mas eu, francamente, achei melhores que os do Jim.

Gostei da maneira como trabalha o Milhem, a fotogenia dele sobretudo .É a primeira vez que o rosto dele está bem explorado. E o Supla também ficou ótimo.

Me deu vontade de ver as ações mais desenvolvidas. Tinha fôlego para isso. Mas como está, me pareceu ótimo. Vale dez vezes aqueles Palíndromos que, talvez eu seja burro, mas não são nada, não querem dizer nada, portanto ganham um monte de prêmios.

Saturday, September 06, 2008

A CENSURA PARECE VITIMAR SÓ O IMAGINÁRIO
INÁCIO ARAUJO


Uma pessoa reclama por ter tido de assistir, sem prévio aviso, a um trailer do mais recente filme de Zé do Caixão. Eram cenas chocantes, diz.

Poucos dias antes podia-se ver, num programa jornalístico matinal, o vídeo da cena em que um homem, a menos de um metro de distância, pelas costas, dá um tiro na cabeça de um ex-empregado.

Não me lembro de ninguém reclamando por ter visto essa cena. Não recordo de nenhuma reação escandalizada da censura do Ministério da Justiça. A censura, assim como a sensibilidade da pessoa do trailer, parece vitimar apenas o imaginário. Um assassinato "real" pode ser visto, talvez porque seja real. Um tiro nas mesmas circunstâncias, num filme, é proibido a menores de 18 anos porque é chocante.

Pois mais vale que pessoas tão sensíveis passem longe de "Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia". Pois alguém a trará - está feito o aviso. E vai executar um longo trajeto com a cabeça dentro de um saco.

Será que essa cabeça, devida ao fantástico Sam Peckinpah, vai chocar tanto quanto as diabruras, também fantásticas, do Zé do Caixão? Posso estar errado, mas esse tipo de reação visa objetos específicos. Lembra a das pessoas em transe histérico para quem o programa de rádio no qual Orson Welles, em 1938, representava a invasão da Terra por alienígenas era, de fato, o fim dos tempos.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 31 de agosto de 2008)

Wednesday, September 03, 2008

DUAS NOTÍCIAS BOAS E UMA NEM TANTO
INÁCIO ARAUJO

Boa notícia: tentei ver "Os Desafinados" no domingo e dei com a cara na porta. Bobeei para comprar ingresso, fiado em que num shopping nunca a sala de um filme nacional ia encher e, quando fui á bilheteria, estava lotado.

Gostei do filme do Murilo Salles, "Nome Próprio". Acho que ele se dá bem filmando lugares fechados, que nem aqui e no "Nunca Fomos Tão Felizes".

Sempre achei, aliás, que ele filma bem, dirige bem, mas acaba com uns textos horríveis na mão.

Desta vez o texto é melhor. A menina é uma chata, pra falar a verdade, a personagem, mas isso não se confunde nunca com a atriz.

A atriz está tão bem dirigida que em momento nenhum eu pensei nela como atriz, eu só via a personagem lá. E ela é boa pra caramba. Parece que o filme quer atingir um público jovem, pelo tipo de literatura que tem lá.

Mistério do Samba: o incrível é que o filme resiste à filmagem amadorística. É pela música e pelos personagens, certamente.

Mas de repente você vê o velhinho mostrado em close com grande angular, parece que a idéia é enfeiá-lo.

Depois, você quer ver uma coisa, não consegue: vem aquela picotação infernal e manda o olho daqui pra lá. Enfim, uma lástima.

Monday, September 01, 2008

ROTEIRO PARA OBRA DE MACHADO FICA MELHOR NA ESTANTE DO QUE NA TELA
INÁCIO ARAUJO

Conta Lygia Fagundes Telles que, após o lançamento do filme "Capitu", de Paulo César Saraceni, a atriz Isabella lhe disse que nunca havia sido tão xingada quanto após interpretar a personagem de Machado de Assis. Com efeito, Isabella ficou com a responsabilidade pelo fracasso do filme. Uma revisão talvez relativize tal culpa. Ela nunca foi um prodígio de atriz.

No entanto, é possível ponderar que "Capitu" não era o filme certo naquele momento. Em 1968, o Brasil tentava ver preto e branco, certo e errado. Não era um momento para a heroína dos olhos de ressaca. A reedição do roteiro de Paulo Emílio Sales Gomes e Lygia Fagundes Telles para o filme permite, hoje, figurar melhor algumas das dificuldades que ameaçam as adaptações de certos textos de Machado de Assis. Para começar: quem seria a nova Capitu? Esbarramos num problema objetivo (há atriz com porte e capacidade para o papel no Brasil?) e em outro subjetivo: quando cada um tem a sua imagem da personagem não há nada mais difícil do que lhe atribuir uma imagem única. Parece-me que não é o único deste fascinante trabalho.

Lygia e Paulo Emílio transformaram "Dom Casmurro" em 35 bem articuladas seqüências cinematográficas, que buscam dar conta das sutilezas do triângulo amoroso célebre, bem como de aspectos da vida brasileira do século 19. Ora, Machado escreveu quase 150 capítulos. Há um tanto de liberdade própria da literatura. Mas o enigma talvez não se entregue tão simplesmente.

A escrita de Machado é diabólica. Onde inserir, num roteiro, as menções a um sem número de fenômenos, da ópera à lepra, referidos no livro e que nos dão conta de que, possivelmente, Machado levasse o triângulo amoroso muito menos a sério do que Bentinho? Onde inserir as formulações que, afinal, fazem de Machado, Machado? Este não é, no mais, um problema para o roteiro resolver. É antes uma questão de mise-en-scène que nos leva ao coração do mistério da adaptação cinematográfica: a de transformar as abstrações literárias em sinais, gestos, em suma, matéria.

Ao longo do roteiro existem inúmeras e por vezes preciosas indicações para essa passagem, como na seqüência 25, com Bentinho no escritório, entre fotos que, como o mobiliário, falam de costumes e comportamentos de um momento.

A relação com o leitor

Pode-se argüir ainda a opção dos autores de deixar de lado algo que para Machado era, aparentemente, central: a relação com o leitor -tão importante que levou Hélio de Seixas Guimarães a lhe dedicar um volume ("O Romance Machadiano e o Público de Literatura no Século 19", Edusp), no qual lembra que "Machado problematiza a figura quase improvável do leitor, procurando incorporá-la à forma do romance". Seria esse "leitor improvável" um precursor do "espectador improvável"?

Talvez ambos apontem para um impasse doloroso: a impossibilidade de obra no Brasil. E possam acrescentar sentido ao que costumamos chamar de "ironia" machadiana, que designa uma distância significativa entre o narrador e o narrado. O interesse do texto de Machado é tão grande que não será exagerado dizer que simplesmente não sucumbir diante da tarefa hercúlea da adaptação já é um feito admirável -foi isso que aconteceu com o "Capitu" de Paulo Emílio e Lygia.

No entanto, a rede de questões lançada pelo roteiro só se pode realizar na mise-en-scène. Penso que este roteiro de "Capitu" precisaria da paixão e da poesia do Jean Renoir de "Um Dia no Campo", da contenção precisa de um Howard Hawks em "Paraíso Infernal", do gosto pela ambigüidade de um Rossellini, da modernidade de um Abbas Kiarostami, da delicadeza de um Walter Lima Jr... Lygia Fagundes Telles acredita que seu roteiro merece bem uma segunda chance. Merece. Mas algo me faz crer que o melhor é deixá-lo assim, sossegado e livre do risco de um novo desgosto, na condição modesta, mas sólida, de um belo volume.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 23 de agosto de 2008)