Canto do Inácio

Thursday, August 28, 2008

UMA DECEPÇÃO
INÁCIO ARAUJO

O filme do Reinaldo Pinheiro foi, para mim, a decepção do ano.

Eu tinha gostado muito do filme anterior dele, o "BMW Vermelho", e achei que "Minha Vida Não Cabe Num Opala" teria algo a ver.

Mas é o oposto. Que terá acontecido? Tenho a impressão de que ele embarcou na onda do cinema brasileiro de pobre, onde cada pobre (da pequena classe média em diante) carrega dentro de si uma interminável sordidez.

Claro, isso deve ser culpa do capitalismo, das elites, etc. O fato é que os caras desumanizados são os pobres. Em metade do cinema brasileiro é assim que funciona.

Pessoalmente, isso não me interessa nem um pouco. O que me interessa é: quem será esse sujeito mulato e de expressão muito digna que passou ao meu lado de manhã, levando sua pasta de trabalho?

Porque, por incrível que possa parecer a quem só conheça o mundo através dos nossos filmes, a população pobre não é constituída essencialmente de bandidos, perversos e outras coisas. Eles existem, claro, mas não desse jeito.

Bem, se a coisa não me interessa em si, que dirá esse apanhado de clichês? Tudo é clichê: o ferro velho, o boxe, a churrascaria, o dono da churrascaria: tudo parece de segunda mão. Nada tem verdade.Em vez de box, devia tratar de Vale Tudo. Me parece que é assim que a coisa funciona.

Como eu dizia, o filme anterior do Reinaldo era o oposto disso, tinha carinho pelos personagens. Então, me parece que ele foi atrás de alguma coisa capaz de conseguir financiamento, de estar numa certa moda. Pode ser. Mas, desculpe, não dá.

Friday, August 22, 2008

OURO DE CHORO
INÁCIO ARAUJO

Somos campeões de choro. Na Olimpíada, o que ganhou chora. O que perdeu também chora.

Fora, o sujeito que teve o filho morto chora. E o sujeito cujo filho virou assassino também chora.
Houve um tempo em que as pessoas se escondiam para chorar. Quando a voz embargava, por qualquer razão, procuravam sair de cena.

Foram as novelas que mudaram isso. No mundo, a vida imita a arte. Aqui, a vida imita as novelas vagabundas. As novelas fizeram de chorar um valor.

Primeiro entre os atores. O momento do choro era o grande momento dramático. Tão importante que era possível perceber no rosto que o ator já não lembrava do personagem. Numa espécie de delírio narcisista, apenas exibia as lágrimas, prova de sua competência profissional e do sofrimento do personagem.

Foi depois que vieram as reportagens (acho). Os repórteres chegam, em geral na periferia, para o cara que tinha perdido tudo na enchente, a casa, os móveis, o cachorro, tudo e perguntam: "Como é que o senhor está se sentindo?" E o fulano, coitado, começa: "Perdi tudo que tinha, tudo que construí...". E cai no choro, o que é justo. Mas trata-se de um choro sordidamente induzido, nada mais.

Com o tempo, todos nos convencemos de que chorar é um signo natural de sofrimento. Ou seja, não se trata mais de chorar porque sofremos. E sim de demonstrar, chorando, que sofremos. Ou que somos felizes, não importa.

Se houvesse algum pudor na TV, cortariam imediatamente tanto o nadador que ganhou como o ginasta que perdeu. Mas a TV, ontologicamente, é destituída de pudor. Ela não reconhece a intimidade. Ela a destrói para que o lugar-comum triunfe. Para que da dor (ou alegria) de alguém se instaure um efeito de contágio que se traduza em pontos do ibope.

Somos o país da TV e, por isso, o país do choro, reduzido ao signo dramático mínimo, ínfimo. Quem não chora só pode ser vilão, um ser destituído de sentimentos.

Então, só para terminar, lembro um tempo em que as novelas eram no rádio e tinham dignidade (vai ver que porque não eram na TV), e havia uma chamada "Teresa, a que nunca chorou". E faziam todas as sacanagens do mundo com a tal Teresa, mas ela não chorava. Levou uns 100 capítulos para, finalmente, Teresa chorar. Havia uma noção de dignidade em meio à dureza da vida na Teresa, na novela, na novelista e nos ouvintes.

O mundo não era esse inferno choroso. Havia pessoas que morriam de mágoa, mas ninguém nem sabia qual era a mágoa. Bom, estou ficando passadista. Nisto eu sou mesmo. Até breve.

Wednesday, August 20, 2008

JOHN FORD FAZ SENTIDO DE DEVER PARECER TRAGÉDIA
INÁCIO ARAUJO


John Ford teria sido um soldado exemplar - foi, por sinal, um intrépido cinegrafista do Exército, durante a Segunda Guerra -, pois em seus filmes o sentido do dever sempre está presente.

Ele está mais ainda nos poucos filmes que produziu, como "Rio Grande". Diga-se ainda, os filmes que produziu tendem a ser mais tristes e mais secos que a média de sua obra. Em "Rio Grande", esse sentido de dever parece tragédia de Corneille: ele deve mandar o próprio filho para a guerra contra os índios; precisa tomar decisões cruciais, que o levarão a pôr a própria honra em sério risco; precisa, no meio disso tudo, reconquistar o amor da mulher de quem o dever o afastou.

O crítico Sérgio Augusto costuma dizer que Ford é o Homero do Oeste. Sem prejuízo da comparação, Ford é também, e por excelência, o Corneille do século 20: aquele que "pinta os homens tal como deviam ser", pois seus heróis são, como o coronel Kirby, humanos, mas também sobre-humanos.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 13 de junho de 2007)

Wednesday, August 13, 2008

MOJICA VOLTA COM SANGUE E IMAGINAÇÃO
INÁCIO ARAUJO


Há mais ou menos 40 anos José Mojica Marins não filmava (se não contarmos aqui uns pornôs para sobreviver e a reutilização de cenas antigas). Talvez um dia seja possível apontar os responsáveis pelo crime de lesa-arte que consiste em deixar na geladeira um talento dessa extensão, enquanto somos castigados com filmes nacionais aguados.

Fazia também quase isso, desde "Delírios de um Anormal", que Zé do Caixão estava fora de circulação. "Delírios" foi uma tentativa de fuga, desde que a censura o podara de uma vez, na entrada dos anos 70. E, quando começa "A Encarnação do Demônio", fazia 40 anos que Zé do Caixão estava recolhido a uma penitenciária. Mesmo preso, diz-se em determinado momento, matou 29 pessoas. Com toda essa ficha, ele consegue sair da cadeia e, de início, toma contato com um mundo de violência inesperada: quase morre atropelado, é agredido verbalmente, é achacado num bar, cruza com meninos que se drogam.

Tudo isso pode ser surpreendente, mas não basta para desviar o velho maldito de seus propósitos: encontrar a mulher capaz de gerar o filho perfeito com que pretende eternizar seu sangue e desafiar os homens fracos, que acreditam nas coisas de Deus e da fé. Sem colocar em questão o mérito de cada proposta, o fato é que Zé as desenvolve muito bem, isto é: seu retorno se dá com mais sanguinolência e ainda mais imaginação.

A beleza plástica do filme (a fotografia de José Roberto Eliezer não trai o encanto popular dos primeiros Zé do Caixão) se impõe seqüência após seqüência. E cenas como a transa com a menina coberta de sangue mereciam estar em qualquer antologia do gênero.

Zé do Caixão não esquenta, em todo caso, com esses detalhes: vai tecendo seu mundo de horrores e se firmando de uma vez por todas como um dos maiores personagens do cinema brasileiro. Ao sair da sessão, um crítico indaga a outro: "Mas este é um B.O.?". Bem, ele custou R$ 1,8 milhão (mais R$ 500 mil para o lançamento). É um baixo orçamento (embora B.O. possa bem significar, no caso, boletim de ocorrência, tais as carnificinas que o velho maldito apronta).

O certo é que entre seus crimes não está o de desperdiçar dinheiro: Mojica chega a essa obra-prima com economia de recursos, belas atuações (Jece Valadão e Adriano Stuart brilham como policiais que podem ser muito bem estudados como exemplo do "estado policial em que vivemos"), Helena Ignez, efeitos e maquiagem modestos e eficientes, e um roteiro provocativo e cheio de imaginação. Tudo isso parece existir para demonstrar que, mais do que dinheiro, o cinema brasileiro e o público precisam é começar a reconhecer onde estão seus talentos.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 08 de agosto de 2008)

Sunday, August 10, 2008

"VAMPIROS" É FIEL À TRADIÇÃO DOS FILMES DO GÊNERO
INÁCIO ARAUJO


John Carpenter é uma espécie de reserva moral contemporânea do cinema popular. Boa parte da carreira deste diretor de 60 anos desenvolveu-se na era do blockbuster, dominada por filmes de enorme investimento (e controle externo proporcional ao investimento).

No entanto, Carpenter soube sempre puxar as cordas do cinema de gênero para escapar da fatalidade da grande produção. Fez policiais, ficções científicas, filmes de terror. Trabalhou, dentro do possível, explorando os limites do cinema de gênero, com orçamentos modestos, filmes fortes, raramente decepcionantes.

É nessa categoria que se enquadra "Vampiros". Ao contrário, por exemplo, desse novo "Batman", cheios de idéias e filosofices, "Vampiros" atém-se à tradição: mordidas, ameaça de contágio, sangue, beleza de crepúsculos e auroras, o sentimento de perigo por toda parte, o vermelho.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 07 de agosto de 2008)

Thursday, August 07, 2008

DE BATMAN A ZÉ DO CAIXÃO
INÁCIO ARAUJO


Ao contrário do que muita gente pensa, fui leitor constante, em outros tempos, das histórias do Batman. Naquele tempo ninguém dava importância aos gibis. E, com todo respeito aos fãs atuais, tenho a impressão de que eles pioraram. Hoje não consigo lê-los. Eram uma coisa sem maior responsabilidade. Agora ficaram tão sofisticados, tão complicados, que não entendo o que querem, nem por quê.

Vamos entrar num acordo: indústria cultural não precisa se confundir com alta cultura. Essa confusão entre as duas coisas é que não me parece levar a coisa nenhuma.

Então, não adianta as pessoas me acusarem de não ler o livro: eu justamente não leio o livro. Gibi hoje em dia parece filme de John Huston, tem que ter um “grande problema”, dimensões insondáveis.

Com todo respeito, inclusive tenho amigos que gostaram do filme, não acho que todo mundo deva pensar como eu, essa personagem do Coringa como grande anarquista me parece uma ficção muito fraca, sem graça. Essa sombra muito próxima, muito evidente do 11 de setembro não vejo que enriqueça o personagem, nem seu mundo.

No meio da discussão surgiu um subplot interessante, dizendo respeito ao “autor”. Não sei se eu sou tão autorista quanto alguns pensam, talvez até seja, mas não no sentido de buscar aquele artista romântico do século 19. Como alguém (desculpe, não lembro o nome) escreveu, certos cineastas me parecem mais interessantes quando seus filmes são meio fracos do que outros.

No caso de Christopher Nolan, seus filmes me parecem tão metidos quanto desinteressantes. Está na média do cinema “independente” americano (os independentes de verdade estão na TV, hoje, pelo jeito. Mas isso é assunto para outra hora). Ora, há muitos diretores que ora fazem filmes que me agradam, ora não. Eu não vou lá dizendo “ah, é do fulano então tem que ser ruim (ou bom)”. É claro que eu me engano e às vezes passo a ver as coisas de outro ângulo.

Não vou ficar agradecendo aqui a quem discorda de mim, não é isso. Mas acho que se dessa discussão surgir a possibilidade de ver as coisas por outros ângulos, ótimo. Por exemplo: que tal dar uma olhada no novo filme do Zé do Caixão, que é inventivo, baratíssimo, cheio de horror e de humor, sabe olhar o mundo sem se tomar por grande coisa por isso, além de ter momentos de uma beleza impressionante.

Monday, August 04, 2008

A VERDADE É OU NÃO "BASEADA EM UM FATO REAL"?
INÁCIO ARAUJO


O que me impressiona em "O Império do Sol" é menos o filme do que o fato de a história ser real. Ou seja, o autor do livro, J.G. Ballard, é aquele garotinho que se perde dos pais nos momentos confusos em que tropas japonesas invadem Xangai, no comecinho da Segunda Guerra.

Estávamos em 1987, e existe ali um esforço evidente de Spielberg para apagar a imagem do menino, que não conseguia crescer, fazendo filmes "sérios". E não estranha que Ballard, tendo passado por tais experiências, tenha vindo a se tornar o escritor de esquisitices tipo "Crash" (esquisito, mas muito interessante). Com efeito, perdido dos pais, ele permanece anos na China, sobrevivendo praticamente sozinho num país de hábitos estranhos.

O que importa, aqui, é essa frase colocada no início dos filmes, que se tornou quase obrigatória: "baseado em um fato real". Em si, seu significado é mínimo: a mais tresloucada ficção sempre tem por base algum fato real. E por ser real um fato não determina que um filme seja um bom filme. E, por fim, todos sabemos o quanto de ficção há nos "fatos reais".

Mas isso é o que o público exige hoje. Ou você lhe dá um blockbuster daqueles, ou "fato real", algo que cheire a verdade.

Que diferença faz se o pai Goriot de Balzac é real ou fictício? Não é a ficção que, no caso, esteia a realidade?

O problema é outro: é que o espectador já não reconhece nos filmes uma verdade intrínseca. A imagem já não é sintoma de verdade. Ela precisa, portanto, para se afirmar, dessa muleta que é "a realidade", pois, sabendo que o personagem sofreu de verdade, podemos nos comover com aquilo. Se for mera ficção, para que perder tempo?

Isso é um sinal, ao mesmo tempo, de certa deficiência dos filmes. A ela será preciso voltar.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 19 de fevereiro de 2005)