Canto do Inácio

Sunday, March 30, 2008

"VIDA DE MENINA" NOS REENSINA A VER
INÁCIO ARAUJO

Há dias na televisão Nelson Brissac Peixoto comentava o fato de que as crianças desconhecem a geografia de suas cidades. Limitam-se a deslocar-se de um ponto a outro no carro dos pais.

A protagonista de "Vida de Menina", ao contrário, conhece sua cidade como a palma da mão. Concedamos: está no interior de Minas, num lugar onde o ouro jorrava no passado.

O que é importante: ela tira desse pequeno universo todas as conseqüências possíveis. O roubo de uma galinha é quase uma questão de vida ou morte. A localização de um túmulo equivale à de uma alma. Os loucos de lá, um encantamento.

A jovem Helena está na situação oposta à dos garotos de Brissac: ela parece capaz de explorar e tirar proveito existencial de cada metro quadrado ao seu redor. Seu espaço é físico, enquanto o dos meninos da cidade tornou-se cada vez mais abstrato. Ele é experimentado numa agenda telefônica, no computador, na TV.

É possível que o encanto do filme de Helena Solberg venha, em parte, daí: do encontro que nos proporciona com as coisas que estão ainda em estado de coisas, isto é, de significantes ainda não nomeados, objetos captados em estado bruto.

Talvez seja esta uma das funções mais pertinentes do cinema: nos reensinar a ver. Nos forçar a ver as coisas como coisas, tirando camadas de cultura ou preconceitos que imperceptivelmente se depositam.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 30 de março de 2008)

Monday, March 24, 2008

"UMA VERDADE..." LEVANTA BANDEIRA ANTIAQUECIMENTO
INÁCIO ARAUJO

Segundo o chofer de táxi (outro, não o de ontem), o mundo não sofre de aquecimento global, mas de resfriamento. As evidências, diz ele, são este verão mixuruca em São Paulo e um frio muito forte na China.

Se as autoridades, prossegue, ainda não revelaram que a ameaça é o resfriamento global, é porque se trata de algo muito perigoso, que trará muito desemprego e abalará o mundo.

Não ouso perguntar por que o frio traria mais desemprego que o aquecimento. Não importa. Meu interlocutor parece ser um dos muitos que não acreditam em nada do que se divulga. Ou antes, seja os governos, seja a mídia nos informam erradamente e com segundas intenções (nem sempre más).

Bem, quem pensa assim não é o espectador indicado para "Uma Verdade Inconveniente", em que Al Gore trata da urgência de combater o aquecimento. Para esses, o filme seria apenas uma peça a mais do xadrez conspiratório que é o mundo das aparências (o mesmo, por sinal, do cinema).

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 04 de março de 2008)

Friday, March 21, 2008

TODOS TENTAM FAZER DO CINEMA UMA ESCOLA
INÁCIO ARAUJO

Segundo o chofer de táxi, os filmes com cenas violentas são os grandes responsáveis pela violência e pelo tráfico de drogas, pois, embora a maior parte dos bandidos nunca tenha entrado num cinema nem para traficar, eles vêem os filmes na televisão.

Ele diz isso com muita segurança, como é freqüente na categoria, mas não é impossível que esteja certo. Desde D.W. Griffith - seguido pelos alemães, pelos soviéticos etc. - todo mundo tenta fazer do cinema uma escola. Não foi por acaso que Mussolini disse que "o cinema é a arma mais forte".

A música também é uma arma (Hitler sabia). Não por acaso, Villa-Lobos esteve na linha de frente da propaganda do Estado Novo nos anos 40 do século passado. Regeu um coral de meter medo em são Januário.

A cena consta de "Villa-Lobos - Uma Vida de Paixão". Não ensina a matar, é certo, mas será que os exemplos edificantes não podem também conter sugestões perigosas?

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 03 de março de 2008)

Monday, March 17, 2008

PRÊMIO JAIRO
INÁCIO ARAUJO

Olha fiquei duplamente feliz ao receber o "Jairo Ferreira Honorário" terça-feira passada no Cinesesc.

Primeiro, porque foi uma surpresa. Depois porque veio de quem veio: um pessoal que eu respeito, admiro e acho que faz um trabalho de fato fantástico, quer dizer, abriu essa frente de resistência, esse maquis para evitar que o cinema vire uma pasta desprezível.

Então, fiquei muito honrado, sim, por mais outros dois motivos: o prêmio tem o lado do nosso amigo Jairo Ferreira. E recebê-lo junto com o Carlão foi uma felicidade.

Para quem não sabe: o prêmio veio das revistas Contracampo, Cinética, Cinequanon, Paisà e Teorema.

Infelizmente, não conheço ainda todo mundo envolvido com elas. Vou conhecendo aos poucos. São ótimos.

Friday, March 14, 2008

FRANQUIA "BATMAN" FAZ CRÍTICA A USOS E COSTUMES IANQUES
INÁCIO ARAUJO


Ninguém é obrigado a fazer o que não quer, diz Clint Eastwood em resposta a seus colegas diretores que se queixam das exigências dos produtores.

Com efeito, ser um "yes man" é, de certa maneira, uma escolha. É verdade que a indústria de cinema, nos EUA, paga muito bem. Mas quem se deixa comprar, no mínimo, perde o direito à queixa.

Tim Burton ilustra bem como é possível se equilibrar na corda bamba da indústria, fazendo obra comercial, sem abdicar da pessoalidade. E ele o fez no momento mais triunfal da cultura do "blockbuster", na virada para os anos 1990.

Hoje, é possível verificar como "Batman" e "Batman, o Retorno" constituem um olhar crítico sobre os usos e costumes, políticos inclusive, da sociedade americana. É o mínimo que se pede, na verdade, de uma obra de arte. Mas filmes são, primeiro, uma mercadoria. Viva esses caráteres fortes, como Burton, que traficam suas obras de arte.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 17 de setembro de 2007)

Tuesday, March 11, 2008

TEXTOS DO DIEGO
INÁCIO ARAUJO

O Diego Costa Assunção é quem criou este blog. Ele que o alimenta quando eu saio de circulação etc.

Ele agora está reunindo os textos escritos por ele, que estão no blog:

www.cinema-setima-arte.blogspot.com

Para visitação. Recebi hoje o alô e ainda não abri, mas vou abrir assim que tiver um pouco de tempo.

Saturday, March 08, 2008

ÚLTIMA CHANCE
INÁCIO ARAUJO

Domingo (9/3) é o último dia para ver "Dragon Inn", do King Hu, na Cinemateca. Olha, é incrível.

Hoje também passa o "Desejo Profano", do Imamura, lá mesmo. Esse eu nunca vi.

Kiyoko manda uma dica: o livro "História do Cinema Japonês", editado pela UNB, de Maria Roberta Novelli.

Friday, March 07, 2008

PERNAS FAZEM A GRAÇA DA "BELA DO BAS-FOND"
INÁCIO ARAUJO


Talvez o que haja de mais encantador em "A Bela do Bas-Fond" sejam as evidências físicas que nos fornece Nicholas Ray, diretor deste filme de 1958. Robert Taylor é um advogado de gângsteres. Está afundado até o pescoço nas sujeiras dos patrões. Ele se apaixona por uma "party girl", na pessoa de Cyd Charisse.

O que tem de mais nisso? É que Taylor é manco (no filme), enquanto Cyd tinha as mais belas pernas do mundo (no filme ou em qualquer outro lugar). O defeito físico de Taylor é o lado visível de sua fraqueza moral.

Daí que, em contato com as pernas de Cyd Charisse, que é uma mulher com posição infinitamente mais frágil ("party girl" é garota de programa, no fundo), Taylor descobre na força moral da mulher a força para se opor a seus patrões e tentar mudar de vida.

O melhor cinema é assim: sempre arruma um jeito de trazer as coisas mais profundas para a superfície, o território das evidências, mas também o do acontecer.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 06 de março de 2008)

Tuesday, March 04, 2008

MAIS CINEMATECA
INÁCIO ARAUJO

Fiquei meio assustado com os gatos pingados que foram ver "Dragon Inn", sábado na Cinemateca. Olha, tem uma outra projeção na quinta e quem puder deve fazer o maior esforço para ver: o King Hu é um pintor, o filme é notável e acho difícil conseguir vê-lo outra vez (as legendas são em espanhol).

Corrige-me a sempre precisa Lucia Valentim que a série na Cinemateca é de Tesouros da Cinemateca de Taiwan, e não Hong Kong, como eu escrevi.

Aproveitando: se alguém conhece e quer recomendar algum dos filmes em exibição na série, sinta-se em casa.