Canto do Inácio

Wednesday, October 31, 2007

MOSTRA II
INÁCIO ARAUJO

Alguns filmes da Mostra a mais:

A VIAGEM DO BALÃO VERMELHO

Tem classe. Grande classe. A cena em que está o afinador de piano, chega o tal do Marc, pergunta da Binoche, a babá diz que ela não está, depois entra a Binoche quebrando o pau com o Marc, depois ela vai falar no telefone, e acontecem mais coisas, e o afinador de piano ali é uma coisa espetacular.

PICKPOCKET

Que diabo aconteceu na China depois da Revolução Cultural? Os caras passam o tempo vendo Antonioni!!!!!

É isso em todas as Chinas. O Hou Hsiao Hsien é muito parecido com isso.

Acontece nada e tudo ao mesmo tempo.

A Mei Mei, a menina de que ele gosta, simplesmente some no meio do filme. Ele vive como se nada estivesse acontecendo. E aí, no fim, ele lembra dela, pelo pager. Um sentido de captar as coisas, o movimento, a China mudando. Espetacular.

Me dá a impressão de que O Céu de Suely aspira a isso.

OS SENHORES DO CRIME

Sabe o que eu pensava durante boa parte do filme?

Caramba, mas aqueles caras do Corinthias achavam que iam passar a perna nessa gente!

A sério, o filme é uma delícia. Não é filme de gênio, é de mestre. Domina tudo com um pé nas costas. O Armin Mueler-Stahl faz e acontece. Revira os personagens o tempo todo. Quando tem de fazer a luta do Viggo Mortensen faz genialmente bem.

Agora, é um filme confortável. Ao menos a minha primeira impressão é a de um notável divertissement. Que nem o De Palma fazendo Os Intocáveis, por exemplo.

Ótima entrevista do "Independent" (Ou "Guardian"?) no Mais!

TABU

Continua Tabu. Absoluto. Não precisava do piano.

Sunday, October 28, 2007

EM FILME DE ENCONTROS, ARTE DE GODARD SE MOSTRA PLENA

INÁCIO ARAUJO

"O Desprezo" é um filme de encontros. O de Godard com BB, para começar: dois ícones da Europa pós-pós-guerra, em trajetos até então opostos: Brigitte Bardot, símbolo do cinema comercial, e Godard, símbolo do cinema-como-arte.

Também encontro entre o novo e o eterno: Jack Palance, o produtor de cinema, deus do presente, e a Grécia de Homero, da "Odisséia". Encontro entre o clássico e o moderno: Fritz Lang, que faz o diretor que vai filmar "A Odisséia", e Godard, que faz seu assistente. Evoca-se a possibilidade de o cinema reconstruir qualquer lugar. A corrida de Piccoli pelas ruas de Cinecittà são um momento antológico, em que Godard filma as "ruas de cinema" do estúdio e a verdade dessas ruas, que recebemos como espectadores quando vemos um filme.

O cinema de Godard teve sempre, como prioridade, um aspecto documental, o desejo de captar um aspecto da atualidade. Por uma vez, seu olho parece mirar outros horizontes. Existe, primeiro, a intriga, a crise conjugal entre o roteirista (Michel Piccoli) e a atriz (Bardot). Godard a leva a sério, mas não como o cineasta clássico. É um instante que parece concerni-lo: quando BB deixa de amar o marido e passa a desprezá-lo. Não nos é explicado. O mundo é o que ele é. Podemos buscar as ressonâncias, não as causas. É o mistério da mulher, de sua decisão, de seu rosto que permanecerão para sempre perturbadores em "O Desprezo".

O drama conjugal puxa todos os demais. Lá está o produtor de cinema, com sua previsível impaciência com a cultura e suas demonstrações de potência. Lá está Lang, como que ciente de sua grandeza, mas também da insuficiência dessa grandeza. E BB. E Palance.

Cinema clássico

Parece que Godard empenha-se em trabalhar sobre um feixe de contradições amplo.

Tão amplo, que o set de filmagem parece uma Babel, cheia de línguas cujas distâncias uma tradutora procura aplainar.

Uma língua os une, que é o cinema. E o cinema surge como o elemento de atualidade que nunca falta a Godard.

Porque existe uma diferença entre o ambiente descrito e o cinema godardiano. Aqui estão os estúdios, as câmeras pesadas, esse aparato próprio de um cinema que parece pronto para morrer: o cinema clássico.

O mistério da mulher, o cinema, o amor, a aventura, o tempo, a eternidade -esses temas surgem e se desenvolvem num dos filmes em que a arte de Godard se mostra de maneira mais plena. Observemos apenas a beleza de cada enquadramento, a limpidez das cores, a disposição dos corpos no cinemascope: "O Desprezo" é um filme muito acessível, em que quem reprova no cineasta a obscuridade (como se fosse sinal de incompetência) só ganhará ao rever seus conceitos. Por fim: os bons extras do DVD incluem documentários de época e entrevistas.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 23 de setembro de 2007)

Friday, October 26, 2007

SALLES USA MORDOMO COMO ESPELHO E FAZ UM ÓTIMO FILME SOBRE SI MESMO
INÁCIO ARAUJO

Em "Santiago" existe um filme e, sobre ele, um outro filme. O primeiro diz respeito ao antigo mordomo da família Moreira Salles e foi feito em 1992 por João Moreira Salles.

Havia razão para o interesse por Santiago: de sua paixão pela aristocracia ao trabalho de copista, trata-se de um homem singular. No entanto, Salles não conseguiu dar forma à série de pensamentos e afetos comunicados pelo ex-empregado de sua família. Havia ali um passado que falava muito ao autor do filme, mas ao que parece não existia maneira de transformá-lo em um objeto estético, de montá-lo.

É apenas em 2007 que o filme fica pronto. Já não é mais -ou já não é apenas- um filme sobre Santiago, o mordomo, mas um extenso questionamento sobre o próprio autor e as razões que o levaram a filmar os locais que filmou e a pessoa que filmou, já que Santiago evoca a casa onde Salles passou sua infância e adolescência.

O que mais se comenta, o que mais o próprio cineasta enfatiza a respeito deste filme é a "luta de classes" implícita no ato de alguém tomar como personagem seu próprio mordomo.

Não há razão para tanto, mas em quase todo o filme, em preto-e-branco, Santiago aparece cercado por maçanetas, portas, objetos diversos. O enquadramento o oprime, assim como patrões podem oprimir a seus empregados. Mas não há luta de classes. Santiago é uma espécie de agregado da família.

Santiago é também uma espécie de memória auxiliar da família Moreira Salles, e é nessa medida que mais interessa a João. É como se este, partindo em busca do tempo perdido, precisasse de um apoio, do apoio desse memorioso capaz de não só lembrar das coisas, como de mitificá-las (a mansão de Walter Moreira Salles é, para ele, o duplo de um palácio florentino). Mas a memória pertence ao cineasta, a João. Tempo para amadurecer.

Não sendo um filme sobre Santiago, o mordomo, resta intacta a questão: por que tanto tempo para conseguir montá-lo? Algo se passou. A morte de Santiago, entre elas. Foi também o tempo de amadurecer a autocrítica, de admitir que, afinal, João Moreira Salles fazia um filme sobre si mesmo. E que se tratava de recuperar o seu passado, e não o de Santiago, que vive num passado de que é despojado. Tanto que, no único momento em que Santiago se dispõe a dizer algo de realmente pessoal, o cineasta deixa a câmera desligada: não era Santiago, nem a estirpe de "malditos" a que diz pertencer que importam. O mordomo, afinal um agregado, era só o espelho.

Um filme tão íntimo, em que o documentarista busca a si próprio através de outro, por que deveria nos interessar? Em primeiro lugar, porque qualquer um de nós busca, também, o seu passado nos objetos, nas pessoas, espaços e construções que freqüentou.

Em segundo lugar, porque é uma natureza do cinema que Salles nos dá a ver: a da montagem. Se a operação de filmar é um impulso, a segunda, de montagem, consiste em dar forma, ao articular as imagens. Articular a quê? Essa a questão que embatucou o documentarista por quase 15 anos. Que operação é essa? É a de entendimento, de articulação entre as imagens captadas e o passado a que se procura dar forma.

Materializar o passado é a proeza que "Santiago" consegue executar.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 24 de agosto de 2007)

Thursday, October 25, 2007

MOSTRA
INÁCIO ARAUJO

Do que vi, o Rivette me pareceu o melhor. “Não Toque no Machado”. Alguém falou que parecia o Manoel de Oliveira. É verdade. Mas o Rivette é apaixonado pelo teatro, pela teatralidade do mundo, e nada é mais teatral, nada supera o amor em matéria de representação.

E temos ali dois amantes, um representando para o outro, todo o tempo. Primeiro ela, depois ele. E o amor sendo levado pela representação: existindo por ela e matando os amantes por ela.

Me pareceu soberbo.

Sidney Lumet. Bom filme, mas um pouco Lumet demais. E o final denuncia as fraquezas anteriores. Que história besta a do pai matar o filho! O cara (filho) tinha perdido, a mulher, o dinheiro, o emprego, o avião, a mãe. O inferno era ficar vivo, é evidente.

Entrevista, do Steve Buscemi: tão esperto que evolui para a quase idiotia.

A Questão Humana: me pareceu muito forte. A morte da linguagem: me lembrou Godard, Alphaville. A ditadura do sentido único. A Bíblia.

Téchiné: quase concordo com o Wolf. Acho que começa muito bem, mas depois de certo ponto derrapa. As boas intenções são tantas que acaba dominando o filme uma espécie de vontade do autor de que as coisas sejam assim, de que todas as pessoas envolvidas com a coisa sejam boas. Na verdade, o que me chamou mesmo a atenção foram os novos peitos da Béart. Ela parece que exige em contrato que sejam mostrados. A toda hora, pimba. Caramba, eu preferia ela de verdade, como era. Mas ela parece tão feliz desse jeito que não dá pra discordar.

A Retirada: Amos Gitai forte como sempre. Parece muito à vontade quando está em Israel. Aquela mulher cantando no início, não sei porque. Achei chato. Mas são só uns minutos. O resto é a Babel do Oriente Médio.

Inútil: Jia Zhang-Ke é bom demais, esse cara. Belo documentário sobre moda, modas, pessoas, transformações chinesas.

David Lynch: queria que alguém chegasse e me dissesse: é isso. Estou perdido, mesmo sabendo que esse labirinto não é coisa sem sentido, é espetacular. Vive-se na incerteza com ele.

O Passado: filme muito sem vida. Parece que fez forçado. Melo total, mas chega no fim a platéia estava rindo. Não é que fosse ridículo, não era. Mas a platéia percebeu que aquilo tinha uma vocação incrível para comédia. Seria uma comédia conjugal antológica. É um melo qualquer.

Tuesday, October 23, 2007

IV
INÁCIO ARAUJO

Filmes fracos aos montes.

Piaf é pífio, como se podia prever. Mas tem uma coisa que deveria ser aproveitada por quem fez “2 Filhos de Francisco”: embora a música dela seja objeto de “revival”, portanto esquecida há tempos, e seja bem mais rica que a dos irmãos Camargo, não se abusa dela, não se permite que o espectador saia enjoado do cinema.

“Morte no Funeral”:

Vi depois de ver o David Lynch. Então é natural que pareça um filme que peca pela falta de pretensão. Mas Frank Oz é sempre bom. O filme começa como quem não quer nada, comédia de boulevard à inglesa, mas depois vai engrossando. É uma comédia em que se ri pra caramba.

Sunday, October 21, 2007

III
INÁCIO ARAUJO

Paulo Autran. É ator de um filme só: “Terra em Transe”. Mas basta. Ele não tinha nada de coloquial em seu tipo ou o papel em “Terra Transe” marcou tanto que ninguém se atreveu a vê-lo de outro modo. Por isso havia poucos papéis para ele no cinema. Teria que ser grandioso, épico. Glauber tinha a medida dessa grandeza.

Thursday, October 18, 2007

II
INÁCIO ARAUJO

Mas o assunto que dá pano pra manga é a construção da narrativa.

No “Mais” da Folha, dois artigos: o de Jorge Coli observa as várias camadas que vão se adicionando no filme: policiais, estudantes, consumidores, traficantes, gente do morro, não do morro, etc. e que dão esse caráter tão complexo ao problema – e que o filme resolve muito bem. O filme se encaminha para uma tragédia, que Jorge vê como decorrente da própria política de repressão às drogas.

Laymert Garcia escreve um artigo que começa muito bem, como análise. Eu discordo dele a partir do momento em que assume a idéia de “herói” para o capitão Nascimento. Me parece, ao contrário, que a dissociação entre o narrador e a narrativa seja um ponto forte do filme. Afinal, que herói é esse que não consegue um herdeiro (tanto na vida pessoal como na profissional, e na primeira em decorrência da segunda)?

Não há herói. Há apenas um progressivo enlouquecimento, dele e de seu herdeiro, o aspirante que sobrevive, e que leva ao assassinato final.

Ao mesmo tempo, me parece muito pertinente o que diz o Laymert sobre o filme (ou o protagonista, a diferença me parece clara e importante demais para ser deixada de lado) considerar que o tempo da análise do problema já passou, de tal modo que estudar o que diz Foucault parece um exercício de futilidade. O filme, de fato, entra no coração da guerra, trata de uma guerra.

Mas, à medida que caminhamos para o final percebemos que também essa guerra é um non sense, porque separar o mundo entre traficantes criminosos e policiais bons, habitantes bons e policiais corruptos, entre bem e mal, certo e errado simplesmente não faz sentido.

Tuesday, October 16, 2007

DE VOLTA
INÁCIO ARAUJO

Bloqueado: não consigo escrever nada sobre o Tropa de Elite (para quem pediu texto sobre “Santiago”: está na Folha; o Diego pode reproduzir quando quiser).

Acho que é porque me parece insano dizer que este filme é fascista ou coisa assim. Ele é até muito bem resolvido, porque estabelece uma dissociação entre filme e narrador muito interessante. E o processo de enlouquecimento dos policiais, o capitão à frente, mas também o aspirante que sobrevive, dá bem medida da extensão do problema.

Dito isso, é um filme do “grande tema”. Pertinente, necessário. Mas não me peçam, por favor, para aderir. Me parece um filme de sala de montagem, onde o cara filma coberturas por todos os lados para depois ver no que dá.

Não me surpreende que o Padilha, no que pude assistir de um “Roda Viva” (a parte final) só falasse de questões policiais. Falar de cinema foi para dizer que não vê cinema como obra de uma pessoa só. É claro que não é, mas não precisamos nos dar a essas platitudes só para justificar a ausência de ponto de vista. Porque é um filme sem ponto de vista.

Monday, October 15, 2007

"A VILA" COLOCA NOÇÃO DE PARAÍSO TERRESTRE NA BERLINDA
INÁCIO ARAUJO

A melhor coisa que pode acontecer é entrar no cinema sem grande expectativa e encontrar ali uma obra que anuncia o nascimento de uma personalidade original. Era assim com "O Sexto Sentido".

Apesar das oscilações normais, o que se seguiu confirmava M. Night Shyamalan como um cineasta que convém acompanhar. É possível que "A Vila" seja seu filme mais interessante até hoje.

E por interessante entenda-se, aqui, misterioso. Estamos numa comunidade perdida no tempo e no espaço. Quando estamos? No século 18, no 19? Não se sabe ao certo. Sabe-se que ela é diferente porque é cercada de seres misteriosos que vivem na floresta e se mostram dispostos a atacar quem quer que ouse sair do local.

As pessoas vivem felizes ali e não pensam em sair. Ao menos até que um jovem precisa de remédios para sobreviver.

Será preciso então que alguém enfrente as forças sobrenaturais e busque os tais remédios.

Existe algo no filme que diz respeito a nossos terrores e à necessidade de enfrentá-los.

Ou ainda ao sentimento de se achar cercado, o mundo exterior mostrando-se opressivo.Ao mesmo tempo, é a noção de um paraíso terrestre algo regressivo que M. Night Shyamalan coloca na berlinda.

Será que podemos conceber um mundo, ou um lugar do mundo, que esteja livre do tempo e de seus dissabores? Será que podemos de fato nos colocar fora da história? "A Vila" é povoado por estas e outras questões.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 29 de abril de 2006)

Saturday, October 13, 2007

“BELEZA AMERICANA” É OPORTUNISTA E TEATRAL
INÁCIO ARAUJO

Na saída de "Beleza Americana", a primeira reação de muitos espectadores (especialmente os que viveram nos EUA) é dizer: "Os americanos são assim". Talvez seja esse o ponto forte e, ao mesmo tempo, o ponto fraco do filme de Sam Mendes.

Ponto forte: o argumento aborda a vida típica de uma família de subúrbio rico, suas mazelas, brigas, ambições, relações com a mitologia, tão típica, do "winner" etc.

Como se refere a todos e a ninguém, a qualquer lugar e a lugar nenhum, o filme permite a identificação imediata de comportamentos, postula-se como crítico e, ao mesmo tempo, não incomoda a ninguém em particular. Essa qualidade ajuda a fazer de filme um favorito ao Oscar.

Ponto fraco: tudo que é típico tende ao genérico, e o genérico nunca foi matéria propícia ao cinema (embora o seja ao teatro, de onde vem Sam Mendes). O cinema não gosta de "qualquer lugar", nem de "qualquer pessoa". Quando trata de um certo lugar e de pessoas determinadas, tende a ganhar em precisão.

Obviamente, esse ponto de vista pode passar facilmente por dogmático. Com efeito, não existe lei a dizer que filmes, para ser bons, devem se referir a pessoas e lugares precisos, que devem ir do particular ao geral e não o contrário.

Mas observe-se a démarche de Kevin Spacey, o pai de família frustrado em mais ou menos todos os campos da vida: de uma tacada, ele manda o trabalho para os ares, realiza velhos sonhos (como comprar um carrão vermelho) e se apaixona por uma ninfeta, amiga de sua filha. Ele não é um homem, é mais o protótipo da revolta contra a mediocridade e a hipocrisia da vida comum. Daí o filme permitir ao espectador uma identificação fácil, mas também confortável, com o personagem. Aquele homem é alguém que conhecemos, mas nunca nós. O filme pode ser qualificado de "provocativo", mas nunca é a nós que provoca ou questiona, é sempre a outra pessoa.

Também a personagem de Annette Bening é típica: histérica, frustrada pessoal e profissionalmente, buscando desesperadamente uma maneira de sobressair em seu trabalho.

Poderia ser uma personagem tocante, mas não é assim que Sam Mendes entende as coisas. Quando ela sai com um outro corretor de imóveis (o rei da corretagem) e tem uma relação sexual com ele, o diretor entende colocá-la numa posição ridícula, gritando ridiculamente, como se fosse necessário enfatizar a deselegância tão própria dela, e que esconde sob uma capa de bons modos. Mas, vamos convir, quanta deselegância.

A ninfeta é uma menina narcisista até o último fio de cabelo loiro (naturalmente), cuja grande preocupação na vida é seduzir quem se encontra ao seu redor.

Não falemos dos demais personagens, como a filha revoltada, o general repressivo (que se revelará diferente do que aparenta), cujo filho é traficante de drogas.

Digamos apenas que o filme começa com um belo plano aéreo da localidade em que se passa a história. Plano que de certa forma resume o filme. O trabalho de Sam Mendes consiste em olhar seus semelhantes de cima para baixo, sem se envolver com eles.

"Beleza Americana" é um filme tão blasé e superficial quanto atraente. Trabalha a partir de um belo roteiro (embora não muito original, pois semelhante em vários aspectos a "Movidos pelo Ódio", de Elia Kazan, como já observado com propriedade).

Sua principal vantagem é ter Kevin Spacey, ator de primeiríssima linha, na cabeça do elenco e coadjuvantes bem dirigidos. Mas é, basicamente, um filme oportunista e teatral, no mau sentido da palavra.

Para terminar: pessoas ligadas ao teatro lembram que a fama de Sam Mendes na Broadway é a de um ótimo diretor de atores, porém não audaz ou inovador. Seria antes um representante do "teatrão". Seu filme confirma bem essa impressão.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 26 de fevereiro de 2000)

Monday, October 08, 2007

LONGA ANGUSTIA COM FALTA DE CONCLUSÃO SOBRE CRIME
INÁCIO ARAUJO

A arte de "Elefante" consiste menos em tratar um determinado assunto (um massacre num colégio numa pequena cidade americana) do que em evitá-lo.

Evitá-lo, no caso, significa, por exemplo, começar por onde o filme começa: um carro que avança aos trancos e barrancos por uma rua, ameaçando subir na calçada.

Logo sabemos que se trata do pai de um dos alunos do colégio onde acontecerá o massacre. "Elefante" acompanhará o dia desse garoto e o de outros protagonistas e coadjuvantes da tragédia.

A vida escolar é vista sob vários ângulos, a partir de cada personagem, ou antes: de como cada personagem vive o dia do massacre. Dito assim, pode-se esperar pelo pior: uma imitação do "Rashomon", de Akira Kurosawa, misturada com uma imitação de "Um Dia de Cão", de Sidney Lumet.

É a armadilha das relações de causa e efeito que o filme desarma cuidadosamente. Ou antes, há uma explicação óbvia: nos EUA é mais fácil comprar armas do que brinquedos - o que nada esclarece. É como se Gus van Sant se recusasse a aceitar as explicações fáceis, essas que tanto podem responsabilizar o país inteiro (tipo "Beleza Americana"), como realizar incursões voyeurísticas que tentam se passar por explicação de certas patologias (como "Felicidade", de Todd Solondz) ou buscar analogias entre os jovens autores do massacre e o nazismo.

É isso que existe de desconcertante no filme: ele contraria não só nossos hábitos cinematográficos como nossa crença de que a arte explica e, ao fazê-lo, redime. Nada em "Elefante" explica - essa é a angústia, esse é o carma que devemos carregar ao longo da projeção e mesmo depois, na saída: não há muito nada a dizer, nada a comentar ou a discutir. As coisas estão lá e são irredutíveis.

Existe um mistério, mas nem é dos personagens. Pode-se argumentar que os assassinos são dois energúmenos. Mas será isso o bastante para justificar o ato? É verdade que vivem numa sociedade violenta. Mas isso vale para Nova York ou Chicago, não para uma pequena e aparentemente bem resolvida comunidade.

Se omite conclusões, segue os alunos fotograma a fotograma, não raro com a câmera flutuando atrás ou ao lado deles, detidamente. É menos nas conclusões e mais nas questões que sugere que está sua originalidade.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 02 de abril de 2004)

Sunday, October 07, 2007

DILLINGER - O INIMIGO PÚBLICO Nº. 1
INÁCIO ARAUJO

John Milius é, como John Ford, um cineasta do mito. Mas o mito de Ford era, essencialmente, o da formação da América. O de Milius é, por assim, o mito do mito, o mito da qualidade mitológica de certas coisas. No caso, é o enfrentamento entre John Dillinger, assaltante de bancos por vocação, e Melvin Purvis, nome célebre do FBI. Para Milius não há, no caso, heróis ou vilões: é o enfrentamento que os torna semideuses. A mise-en-scène é inventiva e existe um frescor em cada cena.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 14 de maio de 2006)

Wednesday, October 03, 2007

HERZOG DELINEIA SUA OBSESSÃO AMAZÔNICA
INÁCIO ARAUJO

Não há movimento mais estranho do que o chamado novo cinema alemão, que se manifestou nos anos 60 e recolocou a Alemanha no mapa cinematográfico mundial, de onde fora banida desde 1933, isto é, desde Hitler.

E talvez não haja destino mais singular, entre essas estrelas, do que o de Werner Herzog - já que R.W. Fassbinder morreu prematuramente, embora deixando uma vasta obra, e Wim Wenders nunca se recobrou inteiramente de suas decepções com os EUA.

Herzog foi o que se destacou de forma mais incisiva, no início, e "Aguirre, a Cólera dos Deuses" o revelou mundialmente (embora "Sinais de Vida", de 68, já tivesse ganhado um Urso de Prata em Berlim). Não só a ele, é verdade. Junto veio Klaus Kinski, até ali um coadjuvante de faroestes espaguete com fama de atrabiliário.

Kinski revelou-se o perfeito herói herzoguiano, romanticamente alemão no gosto pela aventura e pela exploração da natureza, mas, sobretudo, pela capacidade com que transitava da obsessão à insânia. Verdade, tudo isso acontecia com Aguirre, o explorador espanhol. Mas Kinski parecia acreditar piamente, mais do que Aguirre, em sua busca pelo Eldorado.

Existe um quê melancólico em "Fitzcarraldo", retorno à Amazônia de Herzog e Kinski, acompanhados de Claudia Cardinale, para falar de aventureiro que planeja construir um teatro na selva. Fitzcarraldo flerta com o impossível, vira desejo em destino e recebe os contragolpes da matéria por tê-la agredido rudemente com a idéia.

O combate entre idéia e matéria está no centro da obra de Herzog e, se não faltam virtudes a "Fitzcarraldo", já lhe falta um tanto do vigor tão impressionante na obra inicial de Herzog, da qual constitui possivelmente o epílogo.

Talvez por isso a cena mais marcante continue sendo a do transporte de um navio -missão de que Fitzcarraldo encarrega um alentado grupo de índios, mas na qual se empenha com toda a paixão, resumindo o personagem.

Isso é o que não se consegue encontrar em "Aguirre". Existe ali uma progressão tão metódica quanto maníaca em direção ao interior da Amazônia. Olhamos o rosto de Kinski e percebemos: esse homem, capaz de controlar o menor movimento de seus homens, é simplesmente cego ao mundo exterior. Da paixão à deriva e da crença ao caos, Herzog controla a evolução do filme com sofrimento visível - mas controla, está claro -, enquanto Aguirre se perde no próprio sonho.

Embora "Aguirre" me pareça superior a "Fitzcarraldo", é inegável que ambos compõem um belo conjunto sobre a obsessão amazônica de Herzog, que ele renovaria mais tarde ao filmar o documentário sobre o magnífico maluco que foi Klaus Kinski, seu inimigo íntimo e alma destes filmes.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 27 de novembro de 2005)